Entre a lembrança de um berço e uma prece por quem se foi

Quinta-feira, 15 de março de 2018.

Eu vejo de vez em quando um texto que circula no Facebook sobre o luto: nós precisamos falar sobre o luto ou algo assim. Nunca li o texto, confesso; parece que a gente só quer pensar no luto quando perde alguém, de fato. Embora o luto seja concebido, de uma maneira geral, como um sentimento de pesar das pessoas depois que sofrem uma perda, para mim pode representar uma maneira de se fazer isso, também. É um processo pessoal e intransferível, mas vou falar disso para os outros, mesmo assim. Lutos, cada um tem os seus.

Já disse uma vez, aqui, que fui uma criança feliz. E em nenhum lugar da minha infância eu fui mais feliz do que na fazenda dos meus avós maternos, onde passava as férias duas vezes por ano todos os anos até pouco antes dos doze de idade, quando a distância e as dificuldades a ela associadas interromperam este ciclo. Passava sempre, a caminho da fazenda, na minha cidade natal, Floriano, mas isto era o que eu considerava na época só um custoso rito de passagem antes de chegar àquele destino tão esperado. Por contingências familiares tínhamos, no entanto, que parar lá, e era com muita impaciência que eu esperava o momento de seguir viagem. Quando a visita incluía pernoites, aí já configurava tortura. Nunca tive, assim, nenhum apego por essa terra natal. Saí de lá ainda bebê e não tive um tempo vivido ali para me lembrar. Ou pelo menos assim eu pensava até o começo desta semana, quando tive que voltar lá para enterrar um dos meus, como se dizia antigamente. Só então percebi, num desses clarões que aparecem pra gente de vez em quando, o tanto da cidade que ficou gravado em mim.

Floriano é uma cidade grande para os padrões de interior do meu estado. Situada às margens do rio Parnaíba, divisa entre o Piauí e o Maranhão, foi um importante entreposto no passado de navegação deste rio. Preservou, desse tempo, sua alma de província. Conserva, ainda, como é comum nesses casos, o ar de decadência em suas paredes desbotadas e ruas de calçamento solto, no centro da cidade, que parecem transmitir a idéia do que já foi mas não está mais lá. Passando por essas ruas, mais uma vez sob circunstâncias de família, e tentando encontrar o caminho para um destino desta vez muito indesejado, passei por um prédio familiar, com arquitetura e reboco nitidamente de outros tempos. Chamei a atenção dos que estavam comigo no carro, um sobrinho e meu marido entre estes: – Foi aqui que eu nasci! Achei interessante como isso veio naturalmente! Brinquei, dizendo que todas as vezes que passei por ali em alguma época da minha vida, teve sempre alguém comigo que falou: – Foi aqui que você nasceu! E a partir desse momento as portas da percepção e da memória abriram-se completamente. Recordei e reparei no lodo coalhado nos esgotos a céu aberto e nas sombras das velhas amendoeiras nas calçadas. Prestei atenção às janelas altas de tábuas corridas, fechadas de par em par, com a pintura que o tempo vem descascando desde sempre. Revi pedaços de muros de alvenaria que já eram velhos quando eu era criança. Puxei da memória e recoloquei no lugar uma antiga quitanda onde um peso de balança salvava do vento o papel de embrulho em cima de um balcão de madeira. Atravessei uma praça de terra batida e caminhos mal definidos que, não fosse pelos destoantes trailers de lanchonete em sua orla, figuraria, sem esforço, num livro do Gabriel García Márquez. E cheguei, enfim, para engrossar fileira e para enfrentar e acudir todo o pesar do meu povo.

Do velório saímos, quase em cortejo, para a missa na Igreja Matriz, na praça principal da cidade. No caminho fui costurando (silenciosamente, porque faz medo até a mim a velha chata que um dia eu serei) outras lembranças, minhas e dos mais velhos, também. Passei pela rua onde tinha uma casa em que se vendiam pirulitos de açúcar queimado, daqueles das famosas tábuas de pirulito, que eram proibidos para nós e se tornavam melhores por isso, talvez. Caminhando para a igreja, passei em frente às casas de lendárias figuras da cidade: um dentista que me lembrou uma dor de dente antiga, um político proeminente, que me lembrou lendas e histórias há muito esquecidas… Na praça revi o bar onde meu pai se reunia com os amigos depois do expediente do Banco do Brasil, segundo ele contava porque eu mesma não vivi esse tempo. O nome e o prédio continuam os mesmos e eu entrei, por um instante, no antigo álbum de fotografias de minha mãe e revi tudo aquilo em preto e branco: um retrato do meu pai sentado a uma mesa, rodeado de amigos, e alguns outros do meu irmão mais velho, vigiado e amparado por meus pais no dia em que deu seus primeiros passos, como eles narraram para nós.

Não assisti à missa de dentro da igreja; não sou mais delas, afinal! Fiquei sentada em um banco da praça, falando amenidades, ouvindo apenas a entonação da voz do padre, que parecia vir do fundo do tempo, e vendo o por do sol primeiro ressaltar, para logo depois esmaecer aos poucos, as cores daquela igreja. Acompanhei, no entanto, o Pai Nosso em pensamento. De tudo o que a Igreja Católica deixou em mim, esta oração é o mais. Ouvi a benção final, também; elas nunca são de mais, eu penso. E entrei na igreja finalmente, para assistir e amparar a despedida definitiva daqueles irmãos que nunca mais se reunirão novamente sob este sol, dos filhos a quem fará falta o abraço e da mulher, esposa e companheira de quase uma vida, que perdeu seu maior parceiro, só para citar o mais relevante. Sob o peso da consternação daquela assembléia, tive uma fugaz perda de referência de tempo e espaço. Mas então os sinos começaram a dobrar e o peso aliviou, trazendo a realidade da vida à tona novamente. O dobre dos sinos têm esse poder, ao que parece.

Na sala da casa da fazenda dos meus avós, onde tudo começou, existem até hoje, numa das paredes, os retratos dos quatro bisavós que deram origem à nossa família. Estão lá desde sempre na minha memória, com suas fisionomias sisudas e suas austeras roupas de outros tempos. Sob seus olhares impassíveis passaram quatro gerações da família. Viram, indiferentes, suas alegrias, suas tristezas, seus cansaços, suas doenças, suas mágoas e ressentimentos e o seu amor, que foi o que no fim prevaleceu. Com uma já há algum tempo conhecida pontadinha de dor no peito, penso que esses retratos e a quinta geração dessa família talvez jamais cruzem os olhares naquela sala.

Voltei a Floriano como o Drummond a Itabira; nunca me disse nada e agora resolveu falar tudo. O que para ele era o ferro, para mim é a terra. É mais, talvez: é raiz profunda de árvore grande, que chega onde eu não imaginava que chegasse. É a consciência bruta de pertencer a um lugar e a sensação crua da passagem do tempo; o saber que está chegando o tempo em que nem ninguém mais falará a mim nem eu falarei mais a ninguém: – Foi aqui que eu nasci / Foi aqui que você nasceu. Nem isso importará mais, também. Impassível em relação aos que por lá passaram, a cidade é, como Itabira e como cada um daqueles bisavós da fazenda, apenas uma fotografia na parede. Isso é luto e aqui eu te entendo, Drummond. “Mas como dói”!

De resto, para quem tiver paciência, o Poema de Natal, do Vinícius. É luto também!

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

6 comentários em “Entre a lembrança de um berço e uma prece por quem se foi

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  1. Belissimo texto! Como, aliás, é o habito desse blog!
    Cada um tem mesmo o seu jeito de viver suas dores das perdas dos seus. Eu não fui pra missa de 7º dia de morte do meu pai. Estava comemorando o aniversario do Sérgio no chopptime. Tava tão bom que preferi ficar mais. Tenho certeza que se meu pai pôde constatar essa minha “quebra de paradigma”, ficou feliz por mim, pois sabia que aquele momento com meus amigos aliviaria a tristeza que sentia no meu coração com a sua partido. Poucos entendem isso, infelizmente. Mas é assim mesmo que funciona, sentimentos e a forma de vivenciá-loa são pessoais e intransferíveis.
    Beijo grande nessa blogueira porreta!

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