Já dizia Rui Barbosa…

Quarta-feira, 23 de setembro de 2020 (e eu nem assisto ao Jornal Nacional…)

Para quem não conhece, apresento agora esta que é uma das minhas tirinhas favoritas da atualidade: Dona Anésia! Dona Anésia é uma personagem criada pelo cartunista Will Leite, inspirada nas suas avós, segundo ele mesmo conta. É uma velha rabugenta, mal-humorada, 100% prática, de uma ironia e uma sinceridade cortantes, que sabe tudo da vida e não tem firulas, papas na língua e nem a menor paciência com ninguém. Além das filhas e dos netos, Anésia tem uma amiga de infância, Dolores, que é exatamente o oposto dela: doce, meiga, crédula, cheia de frufrus e com uma visão cor de rosa do mundo. É principalmente em torno desta diferença de personalidade entre as duas que as tirinhas se mantém. Uma completa a outra. E a Anésia é aquela velha que todo mundo deveria querer ser de vez em quando, eu acho. Adoro!

Feita a devida apresentação, vou contar porque ela está por aqui hoje. Esta tirinha que abre a crônica de hoje é do começo da semana passada, publicada no perfil dela no Instagram. Dei gargalhada com ela e me lembrei do tanto que eu já falei, aqui, dos meus conceitos do bem e do mal – é sempre um tema recorrente e atual, afinal! Na sexta-feira, por acaso e coincidência, li uns trechos de alguns discursos e conferências de Ruy Barbosa (eu também gosto de comer ovo mexido com katchup e farinha). São textos das duas primeiras décadas do século XX, alguns da campanha civilista, quando foi candidato à presidência da República, e falam um pouco sobre o tema. Ruy Barbosa era aquele orador impecável, que dominava a retórica perfeitamente e não tenho dúvida nenhuma de que seus discursos eram meticulosamente preparados para “causarem”. Sem entrar no mérito dos fins, por assim dizer, penso que um discurso, mesmo que cuidadosamente planejado, articulado, bem escrito e ensaiado, só é bom de verdade se contém ideias boas, e as dele, nestes específicos, são, no mínimo, interessantes. Ruy Barbosa também era um político estiloso e como tal, historicamente talvez careça de credibilidade. Não olho para o homem, no entanto, digo mais uma vez. Para continuar, acesse um dicionário de português e vamos adiante. NdT, aqui, será mais um “NdI”, nota do interpretador, que por sinal sou eu.

Num dos discursos ele fala sobre o bem e o mal (“sobretudo o mal político, a terrível avariose brasileira”) e diz que o mal só vence o bem quando rouba deste o necessário para tomar o seu lugar, quando dele se veste ou se fantasia (NdT) —  “Se a injustiça, a mentira, o egoísmo, a cobiça, a rapacidade, a grosseria d’alma, a baixeza moral, a inveja, o rancor, a vingança, a traição, aparecessem nus e desnudos aos olhos do indivíduo, aos olhos do povo, aos olhos da sociedade, aos olhos do mundo, ninguém preferiria o mal ao bem, e o bem não se veria jamais desterrado pelo mal.”(sic).

Fala, em outro trecho, do reino da mentira. A mentira geral que grassava o Brasil de sua época: “Mentira nos protestos. Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentira nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas coisas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos. Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados à nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentira nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentira nas candidaturas. Mentira nas garantias. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. A mentira geral. O monopólio da mentira”. Fala da mentira impregnada de tal forma nas consciências das pessoas, tornando tão difícil distinguí-la da verdade, que assim os mentirosos acabavam por mentir a si próprios. E que até os que não são mentirosos também mentiam, muitas vezes sem nem saber que estavam mentindo. 

Depois ele fala da paixão pela verdade. Faz uma comparação quase parnasiana entre a verdade e a convicção do bem com o curso de um riacho que desce pela montanha e, encontrando um obstáculo, redemoinha, luta e finalmente o transpõe, culminando numa cachoeira que depois termina por se acumular no manso regaço de um lago (fala sério! – NdT). Deixando o basta ao lirismo comedido para um(a) Bandeira de alguns anos depois, ele diz que o que move a palavra verdadeira não é a revolta, a cólera, a destruição nem a maldade. No dizer dele, a energia motriz das almas é a vibração da fé e o poder do pensamento. Termina esta parte com um testemunho da sua própria fé (talvez nele próprio, quem sabe? – NdT): “As revoltas da consciência contra as más causas, ainda contra as piores, não azedam um coração desinteressado. O meu tem atravessado as maiores procelas políticas, às vezes soçobrado, ferido, sangrando no entusiasmo e na esperança, mas sem fel. Não seria este novo encontro, embora duro e violento, com a mentira política, a velha corrutora dos nossos costumes, a sabida arruadeira das cercanias do poder, a pimpona rixadora do grande mercado, que me induzisse a esquecer, para com as pobres criaturas por ela contaminadas, a lição divina da caridade. Antes de político me prezo eu de ser cristão. Não sei odiar os homens, por mais que deles me desiluda. O mal é inexorável, pela consciência de ser caduco. O bem, paciente e compassivo, pela certeza da sua eternidade”.

Brilhante orador, intelectual de altíssima estirpe, dentre outras notoriedades, como político, no entanto, Ruy Barbosa mostrou-se, no fim das contas, mais um teórico essencial (e não somos todos? – NdT). Lutou por causas louváveis, teve algumas atitudes reprováveis e acabou desiludido (e não acabamos todos? – NdT) com algumas das verdades que ele mesmo defendeu. A República que ajudou a proclamar foi uma delas. Mas, ele era um político de outros tempos, não é verdade? Outra realidade… De seu tempo para para cá nós já tivemos, no Brasil, os tradicionalistas, os baby boomers, a geração X, os millennials e a geração Z. Em 1909 ele dizia viver em um ambiente de “mentiraria“, que iludia e desesperava seus contemporâneos e arriscava, assim, enganar também os vindouros e até a história da época, quando fosse posteriormente analisada. E nós com isso, né? 

Ontem, precisamente, depois de repassar as noticias dos últimos dias — e vale também para os últimos meses, ou anos… décadas, talvez —, eu pensei nas palavras e nas bandeiras (ele foi o idealizador da primeira bandeira da República do Brasil, para quem não sabe) do Águia de Haia. E, apesar de ainda me identificar mais com o otimismo da Dolores na maior parte do tempo, eu me lembrei mesmo foi da Anésia. E me levantei às 5:40 da manhã.

Laços fora e vassouras em punho, “eia, pois, brasileiros avante!” E vamos todos seguindo com fé!

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