Saudade, a lua brilha na lagoa

Terça-feira, 31 de agosto de 2021 (ou quase isso)

Um tempo desses eu vi um vídeo do Paulinho Moska contando a história de uma das músicas dele que eu gosto mais, Saudade, que ele compôs em parceria com Chico César. Ou eu mostrei pro meu filho ou ele me mostrou, não me lembro mais; nós dois gostamos deles dois e a história é muito engraçada. Ele conta que a ideia surgiu de uma visita de Chico César a ele, no Rio. No caminho para o apartamento de Moska, onde ficaria hospedado, Chico César passou pela lagoa Rodrigo de Freitas e viu uma bonita lua refletida em suas águas, e já entrou na casa do amigo contando essa história. Disse que ao ver aquela lua tão bonita, sentiu saudades. “Saudades de quê, Chico?”, perguntou o Paulinho. “De nada”, respondeu Chico. Daí eles resolveram fazer uma música com a história, que tem outros detalhes que a tornam engraçada mas que não interessam ao meu contexto aqui. O fato é que dessa lombra dos dois saiu essa musiquinha encantadora.

Duas semanas atrás eu fiz uma rápida viagem a São Luís, no Maranhão. Num começo de noite, passando por outra lagoa, a Lagoa da Jansen, vi a lua cheia boiando em suas águas, também. Não deu para registrar a beleza que Chico César relatou naquela outra lagoa do Rio, mas tirei uma foto e mandei pro meu filho, com o primeiro verso da canção: “Saudade, a lua brilha na lagoa”. É quase uma piada particular, minha e dele, e daí eu descambei para outras saudades.

Tinha mais de dez anos que não pisava os pés naquela cidade. Morei lá do final da década de 70 até o início da de 80 e voltei inúmeras vezes depois de ter me mudado, porque lá ficou um dos meus irmãos. Ele mudou-se para Brasília por uns tempos e no período em que passou fora, não vi muito sentido em ir a São Luís, apesar de adorar a cidade. Hoje ele vive lá novamente, e cumprindo uma promessa feita antes da pandemia, fomos fazer uma visitinha a eles. 

Eu já disse por aqui que adoro cidades antigas e, das que eu conheço, São Luís é uma das minhas preferidas. Sempre que penso no seu centro histórico, lembro do verso da canção do Fagner, “bela é uma cidade velha’. Conheci as músicas de Fagner no tempo em que morava lá e Frenesi me lembra muito daquele tempo bom. Nesta viagem fiz (senão não seria eu), como em todas as outras vezes, a minha volta nostálgica pela cidade, principalmente pelo centro antigo, que ficava perto de onde morei. Fui com meu marido e demos um passeio a pé por uma parte do centro histórico, num pedaço dele em que a confusão de tapumes, trabalhadores e montadores de uma feira livre para o dia seguinte descaracterizou o que teria sido um passeio tranquilo. Passeamos pelo Palácio dos Leões, Igreja da Sé e pela praca onde fica o Palácio do Comércio e, em outros tempos, o Hotel Central. – Que charmoso era tomar um sorvete no bar na calçada desse hotel, servido em antigas tacinhas de inox!  Depois rodamos um pouco de carro, também, por onde dava para ir, porque as obras estendiam-se como os corredores do túnel que, diz a lenda, passa por debaixo daquilo tudo. Mas a facilidade com que eu ando por ali, com que eu puxo do fundo da memória os caminhos, as ruas e a minha própria história naquele canto do mundo mais de quarenta anos atrás, às vezes me impressiona. Rua da Paz, rua do Sol, rua da Alegria, rua de Santana, rua Grande – a minha rua… ando por aquele pedaço de chão como se nunca tivesse saído de lá e o tempo não tivesse passado, e isso às vezes traz uma sensação boa. Que dessa vez passou bem rápido, devo dizer. O fascínio que eu sempre senti por aquelas ruas estreitas, prédios de azulejos, casarões com seus porões abaixo do nível da rua, só para citar o que mais me pegava pelo pé, deu lugar a uma tristeza desconsolada por ver a ruína em que tudo se transformou. Nem as plaquinhas azulejadas, com os nomes das ruas, encontramos mais. A maioria dos pontos históricos daquela região está fechada. As casas, a maior parte delas parece desabitada. Lindos pátios de trezentos anos, com seus bancos de pedra, que vemos por entre gradis enferrujados, todos abandonados. Prédios lindos, como o da antiga Faculdade de Odontologia (ou seria de Agronomia?), em ruínas. A palavra que me veio à mente durante todo o percurso foi decadência, mas a despeito de tudo isso, segui com meu projeto mesmo assim. Refiz meus passos para a antiga escola de inglês, as visitas à livraria das Edições Paulinas, o passeio mental pelo calçadão do comércio, o consultório do meu dentista (não sei por que esta memória não falha nunca) e, não finalmente mas, indefectivelmente, a passagem pela minha antiga rua e pelo meu colégio daquele tempo, o antigo Colégio Marista, ou Colégio Maranhense, como queiram. A minha casa, sempre cheia de tanta gente e que ficava a não mais que trinta metros do portão principal do colégio, hoje não existe mais. O colégio, vendido ao Estado pela Congregação Marista, do tempo que eu estudava lá só conserva a bonita estrutura. De resto, até a cor mudou, hoje ele é azul. Parei para fotografar, entre o medo e a pressa porque no entorno rolava um fim de feira algo perigoso. As fotos foram tiradas por entre as grades do muro, mas nos poucos minutos que passei ali, ainda consegui me ver descendo sentada os corrimões de pedra daquelas escadas de outros tempos, cantando o Hino Nacional no pátio interno, caminhando com minhas amigas no recreio e, mais vívida do que qualquer outra lembrança, lendo na grande biblioteca que ficava em um dos cantos da construção principal. Aquele era um dos meus lugares preferidos do colégio e era para onde às vezes eu corria, depois de terminadas as tarefas em casa. O acervo era grande e variado, e ler numa biblioteca era algo especial para mim, naquele tempo. Contornamos, depois, pelo Parque do Bom Menino, ainda cheio de crianças , e a cena de meus irmãos mais novos passeando ali com suas bicicletas novas, ganhas no dia de Natal, passou rapidamente pela minha cabeça. Mas o tempo era curto, não deu para entrar. Não tinha mais irmãos mais novos nem bicicletas, ali, também.

Dali seguimos direto para o meu lugar preferido na Ilha inteira, a Praça Gonçalves Dias. Localizada em um platô com uma vista espetacular da Baía de São Marcos e com a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios ao fundo, é o lugar mais bonito de São Luís,  em minha opinião. No centro da praça, do alto de uma imponente torre, uma estátua do poeta maranhense contempla as palmeiras onde, segundo seu poema, cantava o sabiá, e que ele não queria morrer sem tornar a ver. Deus às vezes faz das suas e para quem não sabe, Gonçalves Dias morreu no retorno de seu exílio, num naufrágio naquela mesma Baía que agora petrificado, eternamente contemplará. Mas este é só aquele parêntese que o maestro Umberto condena… prego. Bom, mas voltando à Praça, foi ótimo andar por lá e me lembrar que naquela igreja eu assistia às missas de domingo de manhã, no meu já distante tempo de missas dominicais. Senti de leve o frescor daquelas manhãs. Ou talvez tenha sentido eu mesma, no frescor daquele outro tempo, sei lá… O fato é que foi bom! E o por do sol na Baía estava espetacular.

Voltando deste giro nostálgico, comentei com meu marido que, pensando retrospectivamente, os anos que vivi em São Luís devem ter sido os mais despreocupados da minha vida até hoje. Morei lá dos 8 aos 12 anos de idade e, nas condições ideais de temperatura e pressão, esta é ( ou pelo menos, era) uma idade em que ainda não sofremos com as tensões e tempestades emocionais da adolescência e nem imaginamos ainda as agruras da vida adulta que chegará um dia. As minhas condições, se não foram ideais, foram pelo menos boas e eu fui muito feliz ali. 

E aqui, no final, eu volto ao princípio de tudo. Nesta rápida viagem, encontrei dois dos meus irmãos e cunhadas, e isso sempre me faz muito bem. Evitamos aglomerações e isso faz bem a todos ultimamente. Constatei, mais uma vez, com muito desgosto, o descaso que temos para com a nossa própria história e a pouca condição geral que temos para mantê-la viva. No meio daquele centro arruinado entrevi, nos restos de azulejos, pedras soltas dos calçamentos e tapumes abandonados, a nossa própria ruína. E quanto à saudade… Bom… Da Praça nós voltamos para casa passando pela Lagoa da Jansen, onde eu vi a lua que me lembrou da música. Ou pode até ser que o próprio giro nostálgico tenha forçado a lembrança ou o sentimento, sei lá. Mas o fato é que entendi o Chico César, e agora sem rir. Saudade, sim, de nada. Ou, de nada que se possa explicar. “A luz que sobra da pessoa”. “O som do tempo que ressoa”. Que definições mais perfeitas!

E a Praça Gonçalves Dias bem vale uma missa num fim de tarde ou, no frescor de outros tempos, num domingo pela manhã. É com ela, sob um lindo por do sol, que eu vou ficando por aqui hoje. (e por lá…)

6 comentários em “Saudade, a lua brilha na lagoa

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