Carnaval 2023: entre o céu e o véu das cascatas da Serra da Canastra.

Quinta-feira, 2 de março de 2023 (era para ter sido fevereiro…)

TAG por onde andei, primeira de uma série, assim espero —

Fevereiro é o mês oficial do carnaval, segundo a memória coletiva do brasileiro. Esta memória, no que me diz respeito, remete aos carnavais de outros tempos; carnavais de samba, de frevo, das marchinhas politicamente incorretas (que só agora sabemos o quanto)… Carnavais de um tempo em que eu brincava da primeira à última música do baile, durante cinco noites seguidas, movida apenas a água com gelo e muita disposição. Carnavais de confete e serpentina, e nós girando no salão… E tinha matinês e/ou bloquinhos de rua, também. Talco, maisena, fantasias… E muita, mas muita alegria por todo lado. Que tempo! 

Mas então é sobre ele novamente, o tempo! E ele vem com suas prendas e graças, lembrando que hoje ele próprio é outro. Na minha cara ele joga o refrão daquele velho samba-enredo: Ó, saudade, meu carnaval é você… – Caprichosos de Pilares em algum ótimo momento dos anos 80… E dá saudade mesmo, não tenho como negar. Mas, se tem uma lição que aprendi com o próprio tempo, é que não se deve ficar amarrado a ele. Que é preciso vivê-lo da maneira como ele se apresenta a nós em cada etapa da nossa vida. E é por isso que eu só brinco agora os carnavais da minha boa memória – nestes eu ainda conheço até as músicas. O tempo passou, a música se transformou, o carnaval mudou. Mas o feriado, esse ficou. E é por ele que eu vou.

Eu já falei aqui várias vezes do tanto que eu gosto de viajar. Longe, perto, praia, campo, cidade… tanto faz. O meter o pé na estrada é que me anima. 

Também já falei algumas vezes do tanto que eu gosto de andar por Minas Gerais. Morei no sul desse estado, no coração da Serra da Mantiqueira, por quatro anos, e esse tempo serviu para despertar em mim  um amor que ficou para a vida inteira. Por muito tempo curti só as lembranças e a saudade mas depois, com a vida mais organizada, nos últimos dez ou quinze anos, tenho ido por lá pelo menos uma vez por ano. É como tomar um remédio bom.  E revigora que é uma beleza! Nesse último carnaval, atendendo a um convite da minha filha, fui conhecer outro canto de Minas, a Serra da Canastra. Já era um destino planejado há tempos, mas algumas limitações físicas fizeram com que eu desistisse da ideia várias vezes. Desta vez eu consegui ir adiante. 

Fizemos nossa base na cidade de São Roque de Minas. Existem outras no entorno, mas as atrações que queríamos conhecer tinham acesso mais fácil a partir desta cidade. Pegamos uma rodovia toda pedagiada, a partir de Belo Horizonte e, à medida que fomos chegando mais perto da cidade, o cenário foi mudando daquelas periferias feias de cidades de grande e médio porte para pequenas cidades e muitos campos com plantações de café, soja e feijão, que iam surgindo a cada curva e, literalmente, ondulavam o horizonte. Verdes de diferentes tons matizavam esta paisagem.  Tinha momentos em que eu me sentia rodando dentro de uma pintura de qualidade (um bom pensamento ao Pintor, por isso). 

Um ditado metafórico antigo da boa gente da minha terra diz que “de longe, toda serra é azul”. Mas a Serra da Canastra, não. Ela é verde desde que se enxerga seu paredão pela primeira vez. Pelo menos é assim nesta época do ano. Só ver de longe aquele “bauzão”, que  devo ter visto antes em algum livro de geografia de outros tempos e que povoou por tanto tempo uma parte do meu imaginário pessoal, só isso já teria valido a viagem. Mas teve mais, muito mais! Vou tentar contar um pouco do que nós vimos.

Paredão da Canastra

Dia 1, sexta-feira: Cachoeira Capão Forro. Como já chegamos a São Roque de tarde, o primeiro lugar que visitamos foi este complexo particular de cachoeiras que fica relativamente perto da cidade. A estrada não é boa, mas dá para fazer em veículos normais, de preferência, altos. Uma trilha fácil, de uns 400 m leva à primeira das cachoeiras. O lugar é lindo, com duas cachoeiras e seus respectivos lagos, onde dá para se nadar tranquilamente entre a cachoeira e a correnteza do rio pedregoso. A água deliciosamente gelada daquela cachoeira numa tarde quente cura até as dores da alma, eu acho. Foi um daqueles mergulhos inesquecíveis! Mais um pouco de trilha e outra cachoeira menor, à frente. Dessa eu curti só um raio de sol chegando na água, filtrado por entre a vegetação. Isso quer dizer, basicamente, que não encarei a descida acidentada até o poço. Vida que segue.

Aquele raio de sol…

O carnaval da cidade era para ser à noite, na praça da Matriz, se a chuva deixasse. Conseguimos um restaurante em um lugar distante dessa dúvida, por via das dúvidas. Restaurante de comida boa, farta e com preços mais do que justos. Ponto. Nada de mais nem de menos. Galinha com quiabo, para não deixar passar a mineirice do momento. E algo com queijo canastra e goiabada, de sobremesa, para seguir a vibe. A propósito do queijo canastra, toda a culinária de lá gira em torno dele. Do café da manhã ao jantar. In natura, como crosta, em forma de molho… Se você parar para pensar por mais de cinco minutos, até seus pensamentos terão cobertura do queijo. Até o inexpressivo bolinho de queijo, com o queijo canastra foi elevado a um patamar superior. Minha opinião.

O par perfeito

Dia 2, sábado de carnaval: Cachoeira Casca D’Anta, parte alta, Cachoeira do Fundão, Curral de Pedra. Nascente do São Francisco. Tudo isso num único dia, saindo às 8:30 da manhã. Contratamos um guia com um carro 4×4 só para nós. Nós, aqui, quer dizer, eu,  meu marido, minha filha e o noivo dela. Da cidade já saímos por uma estrada de terra que ora piora e ora melhora, mas em nenhuma hora pode ser chamada de boa. Só que, diante da exuberância da paisagem que nos cerca, um cerradão a perder de vista, acabamos não pensando muito nisso. (Um ou outro ai, aqui e ali, saía involuntária e eventualmente das nossas bocas, no entanto). O guia também ajudou. Já na primeira meia hora de estrada, parou o carro e nos mostrou um veado campeiro pastando tranquilamente na campina daquele cerradão. Estamos na estação das chuvas, o capim está verde e há flores de todas as cores nas margens da estrada. Pequenas flores do mato que não chamam muito a atenção de desavisados, mas o meu alarme é bem sensível para isso. Uma festa para meus olhos e para minha câmera, também. Levei uma broncazinha de leve, do guia, numa das vezes que pedi para parar e fotografar. Segundo ele, tínhamos que chegar ao Fundão antes da chuva porque se chovesse não conseguiríamos subir a trilha. Depois de nem sei mais quanto tempo descendo um vale por uma estrada muito ruim, chegamos ao início da trilha. Foi, de longe, a trilha mais difícil que já fiz. Mais ou menos 1,5 km, a maior parte destes, subindo. E subindo pedra. Terreno muito acidentado, em alguns trechos quase uma escalada, com escadas, cordinhas e paredões estreitos. Quando vencia a vertigem ou quando parava para recolocar no lugar o meu eixo de gravidade, alterado continuamente pela mochila mal arrumada nas costas, eu conseguia ver a vista linda do rio, lá embaixo, vindo da cachoeira mais adiante. Muitas cores e muitas flores diferentes no trajeto. Como eu era sempre a última da fila, atrasada pelas câmeras, ainda pude ajudar um senhor idoso a subir um lance mais difícil. Ele tinha um sobrepeso considerável e me disse que o joelho era operado e ele não conseguia dobrar. Fiquei pensando no que ele estaria fazendo numa trilha como aquela, nessas condições. Uma queda d’água espetacular, caindo num grande lago caprichosamente cercado por pedras, formando uma piscina natural de um verde encantador. Descobrimos ali que o senhor que eu ajudei vai lá todos os anos, às vezes até mais de uma vez. E eu entendi ele. Vale muito o esforço! 

Cachoeira do Fundão, vista de cima da trilha

A chuva se perdeu de nós e conseguimos voltar sem problemas. Do Fundão seguimos para a parte alta da Cachoeira Casca D’Anta. Neste local, 17 km depois de sua nascente, o rio São Francisco, ainda um riacho, forma um trecho com um banho maravilhoso, antes de despencar na famosa queda d’água e seguir seu curso, Minas Gerais e Nordeste afora. O esplendor da cachoeira nós só conseguiríamos ver no dia seguinte, da parte baixa dela. Mas, tomar banho no Velho Chico, enquanto infante, não tem preço. 

Rio São Francisco aos 17 km de idade, antes de cair na Casca D’Anta

Na volta paramos na nascente histórica do rio, onde a estátua de um São Francisco de pedra parece velar pelo lugar. O guia perguntou se notávamos algo diferente na imagem. Sendo São Francisco um dos poucos santos da igreja católica de quem sou fã (não disse devota), pela história pessoal dele, notei logo a ausência dos clássicos passarinhos e outros animais na estátua. No lugar desses, um crânio humano aos seus pés. O guia então explicou que aquela era uma imagem de São Francisco na segunda parte de sua vida, quando se dedicou a cuidar dos enfermos, leprosos … Não é uma imagem bonita, devo dizer. A nascente, em si, é um pequeno brejo de água cristalina, cercado por capim, mato baixo e sem outras características marcantes a não ser o fato de ser a nascente do Velho Chico. Mas, ao final da visita você pode sempre dizer: Nascente do São Francisco, checked. Na volta ainda paramos no Curral de Pedra, pouso de tropeiros que conduziam gado e mercadorias através da Serra, em tempos remotos. De tão bem conservado, o lugar vale uma foto. Pela beleza e pela história.

Voltamos ao por do sol, mas não sem antes termos avistado uma família de jacus atravessando a estrada, um tamanduá-bandeira, bem de longe, e um arco-íris no céu daquele cerradão.

Nascente histórica do Rio São Francisco

Segunda noite, outro restaurante básico. Desta vez, perto da muvuca do que seria o carnaval, se não chovesse e houvesse. Choveu! A música ao vivo, no restaurante, era por conta de um rapaz de muito boa vontade tocando e cantando um excelente repertório de rock nacional dos anos 80. Estávamos em casa.

Dia 3, domingo de carnaval: Cachoeira Casca D’Anta, parte baixa. Desta vez nós fomos sem guia. O carro do noivo da minha filha é alto e aguentou bem as estradas. Eu acho. Antes de entrar no parque, visitamos uma outra cachoeira, a da Chinela. Bonita como as outras de seu porte, mas sem maiores particularidades. A estrada que vai para a Casca D’Anta segue o tempo todo com o paredão da Canastra, às vezes à frente, às vezes ao lado, e em qualquer parada que se faça, a vista é belíssima. Antes da portaria do Parque a muvuca do carnaval nos alcançou. Como esta é uma das maiores atrações da região e uma que dá para ir de carro próprio, e não se paga para entrar, com o feriadão – e num domingo – só podia estar muito cheia, mesmo. O carro ficou estacionado a 1 km da portaria e a partir dela, seguimos para subir outra trilha de outro quilômetro e não exatamente fácil. Ao longo dela, locais para banho e placas pedra com trechos de escritos do botânico Auguste de Saint-Hilaire, descrevendo sua chegada à Cachoeira no tempo do Brasil-Colônia. As minhas impressões seguiram as dele. A maior queda d’água do rio São Francisco é um espetáculo digno do trabalho que temos para vê-la de perto. Do alto de quase 190 metros de altura o rio despenca num belíssimo véu, num movimento hipnotizante. Eu tive dificuldade para deixar de olhar. E o mais longe que ficamos do poço da cascata ainda não foi longe o suficiente para que não terminássemos encharcados só com os respingos dela. “Ela não se precipita das rochas com violência, exibindo pelo contrário, um belo lençol de água branca e espumosa que se expande lentamente e parece formar grandes flocos de neve. As águas caem numa bacia semicircular rodeada de pedras amontoadas desordenadamente de onde descem por uma encosta escarpada para formar o famoso rio São Francisco que tem quase 700 léguas de extensão e recebe uma infinidade de outros rios. O estrondo que as águas da cachoeira Casca D’Anta fazem ao cair é ouvido de longe ea névoa extremamente fina que elas produzem é levada a uma grande distancia pela deslocação de ar causada pela queda.” Foi Saint-Hilaire quem o disse, em 1890. E eu só sei que ainda é assim…

Casca D’Anta, vista frontal.                         (foto tirada pela minha filha)

Terceira noite, repetimos o restaurante da primeira noite. Não choveu, mas não sei muito do carnaval. Novamente pulamos essa parte.

Dia 4: Cachoeira do Cerradão e queijarias da Canastra. O Complexo de Cachoeiras do Cerradão é também uma reserva particular transformada por seus proprietários num santuário da fauna e da flora do cerrado. Muitas espécies de pássaros foram catalogadas ali. Tamanduá-bandeira passeia lá pelo jardim da portaria, às vezes. E a águia serrana fez seu ninho num dos paredões da Cachoeira. Outra trilha difícil, e de dificuldades progressivas. Antes das Cachoeiras, três poços para banhos revigorantes, para aguentar o trajeto. As quedas da cachoeira também são três. A primeira tem um acesso razoavelmente difícil. A segunda é seguramente difícil. A terceira, muito difícil, eu nem tentei subir. A vista dela a partir da segunda já me contentou. O mergulho também. Para a volta, outra subida quase interminável, só que em trilha de terra, sem pedras, e com uma vista maravilhosa, de um verde de doer a vista numa tarde de sol como aquela. Que maravilha de passeio! E ainda me rendeu um livro de fotografias maravilhoso, que comprei na portaria do complexo, só sobre os beija-flores da Canastra.

As três quedas da Cachoeira do Cerradão
(foto tirada pela minha filha)

Queijarias:  segunda parte do objetivo do dia, as queijarias estão entre as atrações imperdíveis da Serra da Canastra. Com vários queijos premiados em concursos mundiais, e num sistema de produção totalmente otimizado, praticamente tocado pelas famílias proprietárias, a região tornou-se uma referência no setor. A qualidade dos queijos, sobretudo os premiados que visitamos e provamos, não deixa nada a desejar em relação aos importados que encontramos nos empórios e grandes redes de supermercados. A linha de produção é impressionante, com poucos funcionários, além dos familiares dos proprietários (ou eles mesmos), explicando, com desenvoltura e conhecimento, todo o processo da fabricação dos queijos, da ordenha ao produto final. Fazendas simples, pequenas, com pessoas simples, porém muito instruídas, vivendo vidas simples num cenário de cartão postal. Apesar do preço que cobram pelos seus queijos  (também não perdem para os importados neste quesito), não se vê nenhum carrão à porta e nenhum outro tipo de ostentação que costumo ver nos sitiantes de coisa nenhuma, em outras terras. 

Pela estrada dos queijos

Na quarta noite, mais uma vez, nada digno de nota, a não ser o pior mojito que tomei na vida. Foram quatro dias rodando por estradas ruins e acho que o enfado, mais do que o cansaço, já dava algum sinal de vida. Paramos apenas para beliscar alguma coisa num barzinho mais pitoresco do que bom, e fazer um último brinde à viagem. Na manhã seguinte, terça-feira, minha filha e o noivo tomaram o rumo para São Paulo e nós seguimos, meu marido e eu, para encontrar nosso caçula em Belo Horizonte e caminhar pelas trilhas urbanas da Pampulha. Na quarta-feira de cinzas nós estávamos novamente em casa. 

Muitas vezes durante as aventuras destes dias, pensei que meu desafio maior era o tempo. Não o tempo de cada percurso, mas o meu de vida. Nas subidas mais difíceis eu pensava nele e vinha aquela determinação de fazer agora porque daqui a cinco, dez anos, talvez eu não consiga mais. Por ora eu consegui. Curti cada momento da programação e até algumas das poucas desventuras de estrada. Não caí nem uma vez sequer, o que, segundo meu marido, é surpreendente. E, fazendo agora esta pequena retrospectiva, imagino que o que eu fiz neste carnaval foi pegar o Tempo pelo cangote e passear com ele debaixo do braço durante o feriado inteiro. Mostrei para ele que ainda vivo segundo o que ele me dá de si, mas ainda fazendo o que eu gosto. De sexta de carnaval até as cinzas da quarta-feira, como era antigamente. Movida, agora, a pregabalina (dor crônica), água gelada, um tantinho de vinho e – ainda – muita disposição. Do carnaval de outros tempos, guardo a saudade boa. E mantenho viva, sobretudo, a alegria. E do amanhã, quem é que sabe, não é? Bom mesmo é nunca perder a fé…

E para não perder também a oportunidade, um pouco do festim visual da Canastra. São fotos amadoras, a maioria tiradas do meu smartphone comum (nas da câmera eu ainda nem mexi), mas assim mesmo, tiradas com muito entusiasmo e boa vontade.

O Fusca e as estradinhas rurais de Minas. Quem conhece vai certamente me entender.

Um fleumático gavião-carcará na beira da estrada (se ficou incomodado com nossa presença, ninguém percebeu)

Off road de responsa (estrada pro Fundão)

São Francisco, guardião da nascente

Curral de pedra, vista de cima

Off road de responsa, parte 2 (estrada pra cachoeira da Chinela)

Trecho de estrada entre São Roque de Minas e Vargem Bonita.                                          (foto tirada pela minha filha)

Auguste de Saint-Hilaire

O arco-íris do céu…

(foto tirada pela minha filha)

E os pedaços dele pelo chão…

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