Domingo, 9 de julho de 2023 (se viva fosse, minha avó faria 108 anos hoje)
– TAG miolo de pote – *
Julho, férias dos outros, trabalho dobrado. Só me lembro daquele velho jargão militar: “— Acelerado, marche!”
E eu aqui, pensando em afeto.

Domingo de manhã é meu momento preferido da semana. Na minha escala pessoal de luxos, estar em casa flanando pelo meu quintal, nessa hora, é um dos maiores. E é um luxo que cada vez mais eu cultuo. Numa brincadeira antiga com os de casa eu gosto de dizer que o meu quintal é maior do que o mundo, como no verso do Manoel de Barros. E não minto sobre isso. É nele que fica o meu posto de observação do mundo, minha St. Mary Mead particular. Todo mundo que eu conheço eu consigo encontrar por lá. E toda história que vira notícia e toda notícia que faz história, é lá que eu vou apreciar. É do fundo dele que saem todas as minhas “falsas profundezas” (feat. Saramago), também. E vamos nós para mais uma.
Dizem por aí que você é o que você lê. Quando eu era criança, as expressões “a perder de vista” e “até onde a vista alcança” me fascinavam. A ideia de amplidão, de espaço, de liberdade e de horizonte ilimitado que elas me passavam devem ter ficado entranhadas na minha cabeça e talvez seja por isso que eu hoje goste tanto dos espaços abertos. E morando num condomínio fechado, pude realizar um antigo sonho cantado pelo Roberto Carlos: eu hoje tenho um quintal sem muro. Você é o que você ouve, também, afinal!
Você é o que você ouve mas tenho que dizer que eu não tenho um milhão de amigos. Nem quero (mais). Com o tempo eu aprendi que alguns poucos bons amigos de verdade já valem o sentido da música. E é no meu quintal sem muro que eu gosto de receber estes amigos. Para conversar, brindar, comer, rir, chorar, recordar e ouvir rock, Belchior e/ou até o coro de passarinhos que durante o dia não silencia por lá.
Você é também o que você planta e eu plantei meu quintal inteiro. São 16 anos plantando, desde que eu me mudei para uma casa. Das árvores às plantinhas rasteiras, tudo o que tem lá foi plantado por mim. Tenho um jardineiro que vai uma vez por semana e faz a manutenção mais pesada, mas o plantar, adubar, tutorar… o cuidar, enfim, é meu. É um trabalho constante, tenho que dizer. Mas que bem que me faz!
Você é também o que você lembra e no meu quintal as lembranças boas viram plantas cujas sementes às vezes eu penso que atravessaram até o tempo, trazidas pelos bons ventos da memória. Cada planta de lá tem uma história que eu conto a quem possa se interessar. Elas criam, agora, novas raízes e dão flores que enchem os dias com cores e as noites com os perfumes de outros tempos. Lírios do vento, bugarim da Vovó… Também dão frutas de sabores antigos, cujas árvores-mães têm raízes fortes, longas e profundas, daquelas que mesmo que eu vivesse 100 anos, não conseguiria arrancar. E sendo assim, no meu quintal, além de frutas da terra, tem jambu do Pará, vinagreira do Maranhão, jabuticaba e couve de Minas, pitanga de algum outro lugar… Então, você é até o que você come, se brincar. E juntando tudo isso — o que você planta, o que você lembra, o que você come (em qualquer ordem) — que delícia de refeição você terá!
Mas era sobre afeto que eu queria falar. A palavra, quero dizer. No tempo em que eu era criança, esta já era uma palavra que remetia a algum ‘antigamente’. Talvez isto fosse uma associação pessoal minha com uma fotografia de meus avós paternos vestidos com roupas dos anos 20 ou 30, que tinha lá em casa. No verso da fotografia, oferecida (ou ofertada, como se dizia no tempo da foto) por minha avó a um casal amigo, a dedicatória era “em sinal de afecto e amizade”. Afeto com o ‘c’ mudo, mesmo. De lá para cá essa palavra meio que caiu em desuso no mundo coloquial, lembrada mais em canções, poemas ou histórias velhas. Ou de velhos e velhas. Mas é uma palavra bonita, por tudo o que evoca. E é muito velha, também! Vem da palavra latina afecttus, que significa disposição, estar inclinado a. A raiz vem de afficere, que corresponde a afetar e significa fazer algo a alguém, influir sobre. Trocando em miúdos, significa a disposição que temos por algo, que pode ser pró ou contra este algo. No sentido científico, por assim dizer, segundo a psiquiatria e a psicologia, o afeto é a base biológica das nossas emoções (todas elas, boas ou ruins) e sentimentos (idem). É o agente que determina o nosso comportamento e influencia diretamente nossa maneira de pensar sobre algo, tendo como base situações passadas e experiências vividas em relação a pessoas, objetos ou ambientes do nosso passado. E então você é o que o seu passado e a sua memória fizeram de você. Tem rumo, como se diz por aqui.
E, por fim, dizem por aí também que quem semeia vento colhe tempestades. Vento é a única coisa que eu não planto no meu quintal. Ele anda por lá por conta própria e nessa época, corre solto. As tempestades também, mas já passou o tempo delas.
Mas e quem planta afetos, colhe o quê?
Às vezes um quintal inteiro, eu acho. Ou, assim falou o mestre Manuel Bandeira, bem antes de mim. É dele o brinde da crônica de hoje.
O Quintal
Que é um quintal? Abro o meu velho Morais, o meu velho e querido Antônio de Morais Silva, e leio esta definição: “É na Cidade, ou Vila, um pedaço de terra murada com árvore de fruta, etc.” Não era bem isso o que chamávamos quintal na casa de meu avô materno no Recife, a casa da rua da União que celebrei num poema. [Evocação do Recife] Então vamos ver o que diz o Aulete no verbete “quintal”. Reza assim: “Porção de terreno junto da casa de habitação, com horta e jardim.” Está melhor, quer dizer, aplica-se melhor ao que chamávamos quintal na casa de meu avô. Apuremos a etimologia, recorramos ao dicionário etimológico de Antenor Nascentes. Eis o que ele averba: “Quintal – 1 (horto): Do lat. quintanale (Leite de Vasconcelos, Lições de Filologia 306) cfr. quinta. A. Coelho tirou de quinta o sufixo al”. No verbete “quinta” registra Nascentes que em Portugal, na Beira, ainda hoje a palavra significa “pátio”.
O quintal da casa da rua da União era isto: uma pequena porção de terreno em quadrado para onde dava a varanda da sala de jantar e em quina com esta a varanda com acesso para a copa, a cozinha, o banheiro, o quarto de guardados; do lado oposto à segunda varanda, bem mais estreita que a primeira, havia o paredão alto da casa da vizinha, onde moravam umas tias de José Lins do Rego; ao fundo ficava o galinheiro, e ao lado deste, o cambrone. Aqui no Sul muita gente não sabe o que é cambrone e ainda menos por que motivo no Recife daquele tempo (começo do século) se dava à privada o nome do general de Napoleão, que intimado pelo inimigo a render-se na Batalha de Waterloo, respondeu energicamente com uma só palavra de cinco letras. Pois fiquem sabendo que o motivo foi este: o engenheiro francês que projetou e dirigiu no Recife o serviço de instalação dos esgotos chamava-se Cambrone, mas não sei se era parente do herói de Waterloo. Os cambrones do Recife eram o que havia de mais primitivo, mas por que o menino de sete anos, futuro poeta a seu malgrado, gostava de estar ali? Só muitos anos depois, homem feito, descobriu a razão, ao ler o poema de um menino genial que se chamava Jean-Nicolas-Artur Rimbaud, poema intitulado “Les poètes de sept ans”, escrito aos dezessete anos. Dizia ele, a meio do poema:
L’eté
Surtout, vaincu, stupide, il était entêté
À se renfermer dans la fraicheur des latrines.
(Verão
Acima de tudo, derrotado, estúpido, ele era teimoso
A se fechar no frescor das latrinas.)
Havia, muito, essa “fraicheur” (*) no cambrone daquele quintal da rua da União…
O quintal, porém, tinha outros atrativos. Primeiro, num canto da varanda da sala de jantar, a grande talha de barro, refrescadora da água, que se bebia pelo “coco”, vasilha feita do endocárpio do fruto do mesmo nome e com bonito cabo torneado; havia, no centro do quintal o coradouro, “quaradouro”, como dizíamos, magnífico quaradouro, com as suas folhas de zinco ondulado; em torno, ao longo das varandas e do paredão da casa das Lins, ao fundo, dissimulando o galinheiro, também magnífico (um senhor galinheiro!), e o cambrone, os canteiros de flores singelas, hortaliças, arbustos, medicinais de preferência (sabugueiro, malva, etc.). Minha avó estimulava as minhas veleidades de hortelão: “Plante estes talinhos de bredo, que quando eles derem folha eu lhe compro”. E eu plantava e ela comprava o bredo, e com esse dinheiro comprava eu flecha e papel de seda para fabricar os meus papagaios… Essa atividade não me fez agricultor nem negociante, mas as horas que eu passava no quintal eram de treino para a poesia. Na rua, com os meninos da minha idade eu brincava ginasticamente, turbulentamente; no quintal sonhava na intimidade de mim mesmo. Aquele quintal era o meu pequeno mundo dentro do grande mundo da vida.
[1965]
(*) frescura, aragem fresca
* Por aqui, nesta minha terra rica das Graças de Deus, quando a gente quer conversar à toa, dizemos que é conversar miolo de pote. Pote, aqui, refere-se a um recipiente de barro cozido, utilizado para armazenar e manter fresca a água de se beber (muito comum no interior do Nordeste antes do advento da energia elétrica rural e das subsequentes geladeiras). Miolo de pote é, portanto, água. E conversar água, no senso geral, pejorativo, é conversar besteira ou sobre qualquer coisa que passe pela cabeça. Seria esta a ‘base ideológica’ das minhas crônicas do cotidiano. Será esta a essência da TAG miolo de pote.
Bela crônica! E viva Manuel Bandeira! E viva Rimbaud! E, mais que tudo, viva o nosso quintal! Ele é, de fato, nosso mundo em miniatura, e é feito à sua imagem e semelhança…
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À nossa! Obrigada
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Adoro pitanga!
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