3 de janeiro de 2025 (primeira grande chuva do ano)

(…) De modo algum nos incomodamos com suas queixas — você não tem mais
ninguém e espero que isso alivie a tensão. Lembro que eu costumava escrever do mesmo modo ou pior para o pobre e velho Pe. Vincent Reade. A vida no acampamento parece não ter mudado em nada e o que a torna tão exasperante é o fato de que todas as suas piores características são desnecessárias e devem-se à estupidez humana que (como os “planejadores” se recusam a ver)
é sempre aumentada indefinidamente pela “organização”. Mas a Inglaterra em 1917, 1918 estava em um caminho ruim, e é injusto que em uma terra de relativa abundância você deva ter tais condições. E os contribuintes gostariam de saber para onde estão indo todos os milhões se a seleção de seus filhos é tratada desse modo. Seja como for, os humanos são o que são, inevitavel- mente, e a única cura (mal provida de Con- versão universal) é não ter guerras — nem planejamento, nem organização, nem regimento. Seu serviço, é claro, como qualquer um com um pouco de inteligência e ouvidos sabe, é um serviço muito ruim, vivendo da reputação de uns poucos homens garbosos, e você provavelmente está em um canto particularmente ruim dele. Mas todas as Grandes Coisas planejadas de uma grande maneira dão essa sensação para o sapo debaixo do chapéu-de-sapo, embora de um ângulo geral elas de fato funcionem e cumpram seu serviço. Um serviço fundamentalmente maligno. Pois estamos tentando conquistar Sauron com o Anel. E seremos bem-sucedidos (ao que parece). Contudo, a punição, como você sabe, é criar novos Saurons e lentamente transformar Homens e Elfos em Orcs. Não que na vida real as coisas sejam tão claras como em uma história, e começamos com muitos Orcs no nosso lado…. Bem, aí está você: um hobbit entre os Urukhai. Mantenha sua hobbitez no coração e pense que todas as histórias assim se parecem quando você está nelas. Você está dentro de uma história muito grande! Também acho que você está sofrendo de “escrita” suprimida. Isso pode ser culpa minha. Você tem tido muito de mim e do meu modo peculiar de pensamen to e de reação. E como somos tão parecidos isso tem se mostrado bastante poderoso. Possivelmente inibiu você. Creio que se você pudesse começar a escrever e encontrar seu próprio modo, ou mesmo (para começar) imitar o meu, você acharia isso um grande conforto. Sinto entre todas as suas dores (algumas simplesmente físicas) o desejo de expressar seu sentimento sobre o bem, o mal, o belo e o feio de algum modo: de racionalizá-lo e impedi-lo de simplesmente supurar. No meu caso ele gerou Morgoth e a História dos Gnomos. Muitas das partes antigas dela (e dos idiomas) — descartadas ou absorvidas — foram criadas em cantinas enfarruscadas, em aulas em frios nevoeiros, em barracas cheias de blasfêmia e obscenidade ou à luz de vela em tendas de alarme, algumas até mesmo em abrigos de trincheira debaixo de balas. Isso não contribuiu para a eficiência e a presença de espírito, é claro, e eu não era um bom oficial…
Não aconteceu nada de mais aqui desde que lhe escrevi na quinta.(...)
– Carta de J.R.R. Tolkien a seu filho Chistopher em algum acampamento militar, em 1944,
Quem é vivo sempre aparece…
Exatamente um ano atrás eu postei a última crônica neste blogueto. Queria dizer, assim como disse o mestre supracitado, que também aqui não aconteceu nada de mais desde a última vez que escrevi. Justificaria o hiato mas seria menos que a verdade e eu não gosto de brincar assim. Não… Para ser bem honesta, este foi um ano de acampamento, cheio de muitas dores fisicas e emocionais. A escrita suprimida talvez o tenha deixado um pouco pior porque, com Tolkien ou sem Tolkien, publicando ou não. nunca parei de escrever por tanto tempo. E como isto dói!
Fazer a crônica de um ano que se mostrou altamente improdutivo seria revisitar os muitos rascunhos que comecei a escrever e não consegui terminar. Como terapia, perdi muito. Tolkien entende isso como ninguém. As histórias que criamos ou contamos são, muitas vezes, a necessidade premente que temos de moderar nossa maneira de expressar o nosso ‘sentimento de mundo’ e a maneira como o vemos ou como nos situamos nele. Mesmo que isso não acrescente nada à vida de ninguém. Quem já experimentou escrever já deve ter sentido isto em algum momento.
Foi um ano meio parado em termos de leitura física, também. O apelo do mundo exterior foi de uma força excepcional este ano e poucas vezes consegui provar o gosto de mergulhar fundo dentro de um livro, ao ponto de esquecer de tudo ao meu redor. Guardei poucas novas referências boas para passar, mas uma hora elas vão acabar aparecendo aqui e ali, eu espero!
Tive, no entanto, muito boas realizações profissionais e isto sempre dá algum alento ao resto da coisa toda, não é verdade? Na minha retrospectiva, além da sedimentação da certeza da tranquilidade emocional que só uma boa estrutura familiar nos dá, a parte profissional foi o que 2024 deixou me deixou de mais motivador.
Também comprei um pedaço de mato para chamar de meu. No dia primeiro de janeiro foi a terra de lá que semeei ao vento, ao pôr-do-sol. Van Gogh à parte, faltou o vento. Mas, não se pode ter tudo. De lá muitas histórias chegarão, eu espero. Publicadas ou não.
E então é isso, muita coisa para dizer mas pouca coisa para contar agora, neste ensaio de tente-outra-vez. No planeta Terra, nada de novo sob o sol; o mundo continua o mundo, a gente derrotando um Sauron a cada dia e vendo orcs surgindo em lugares muitas vezes inesperados. Mas, mesmo sem escrever nem contar muita coisa, muitas histórias eu vivi. Mantive a minha hobbitez no coração e sigo dentro da minha própria história. Como meu mestre mandou.
Hoje, em mais um ano (embora pífio) da Gata Preta, ainda cedo espaço, como de costume, ao Professor. É também dele o aniversário de hoje. Em 2025 eu espero passar desta crônica e poder, finalmente, dizer: – Voltei! Por enquanto, foi mais um ensaio de passo de dança semiesquecido. Mas deve ser como andar de bicicleta. Vamos ver no que dá…
Tenham todos um bom ano! Eu, de minha parte, em breve serei avó!!!
P.S.: Esta pequena crônica de retorno eu dedico, como agradecimento, às duas únicas leitoras que nunca deixaram de me cobrar a próxima crônica. Elas sabem quem elas são.
Quem bom ter você de volta! Embora nunca tenha cobrado oralmente a volta das suas crônicas (acho que ao escritor deve sempre ser dado o tempo que for necessário) também senti falta! E voltou com estilo! Muito boa a crônica. E que consigamos sempre manter nossa hobbitez no coração…
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Quem bom ter você de volta! Embora nunca tenha cobrado oralmente a volta das suas crônicas (acho que ao escritor deve sempre ser dado o tempo que for necessário) também senti falta! E voltou com estilo! Muito boa a crônica. E que consigamos sempre manter nossa hobbitez no coração…
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