Segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019
(tempo de escrever; fora de mim mas nem tanto assim)
“A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.(…)”
– Fernando Sabino, A Última Crônica
Nesta semana que passou, conversando por telefone com minha filha que mora fora eu perguntei, como sempre faço, pelos amigos que foram-se embora daqui junto com ela. São uns meninos queridos, que praticamente viraram adultos aqui em casa. Amigos de faculdade que dividiram tudo, desde as angústias das provas às coxinhas calóricas e consoladoras (de angústias) do Seu Nagano, passando muitas vezes por uma picanha com conversa boa e violão na rede num fim de período, por aqui. Terminaram o curso juntos e pegaram a estrada para a residência juntos, também. No começo minha filha morava a meio quarteirão de distância dos demais e eles continuaram a dividir tudo no exílio, também. E às vezes tinha picanha e conversa boa quando eu ia por lá, embora não mais o violão. Com o tempo e as atribulações de cada um, isso também foi rareando e resumindo-se a um cineminha, um chopinho de leve ou uma visita de vez em quando, apesar de o contato e a amizade continuarem. As amizades foram se diversificando, a rotina pesada da vida adulta foi se impondo e cada um foi se aprumando no seu próprio rumo e ajustando seu ritmo a isto. A vida seguindo seu curso, foi o que eu disse à minha filha. Mas senti a garganta travar e o peito apertar um pouquinho.
Não vivo no passado, mas sou uma pessoa nostálgica por natureza. Uma vez, contando para uma grande amiga que tive sobre uma entrevista do Gabo (ela também é fã dele) que eu tinha lido, falei que ele tinha dito que todo escritor passava a vida escrevendo o mesmo livro, e quando a repórter perguntou qual era o dele, ele respondeu, sem titubear, que era o livro da solidão. Ela me perguntou qual seria o meu, se fosse escritora. Respondi, na bucha, que achava que seria o livro da nostalgia. Ela rebateu, também de pronto, que o dela seria o livro das circunstâncias, do aqui e agora, e que tudo o mais era só “jantar de ontem”. Nunca me esqueci dessa nossa conversa, que já tivemos depois de adultas. Nós fomos amigas desde o início da adolescência mineira até a vida adulta de uns dez anos atrás, quando ela resolveu sumir, por força de alguma circunstância para mim até hoje incompreensível. Era alguém que sabia muito de mim e os nossos jantares de ontem ainda me fazem muita falta até hoje, mesmo depois de passado tanto tempo.
Lembrei de tudo isso porque li neste fim de semana uma linda carta de Fernando Sabino para Hélio Pellegrino, escrita na década de 40. Eles se conheceram aos quatro anos de idade, no jardim de infância, e foram amigos até a morte. Formaram, juntamente com Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, um quarteto célebre cuja amizade durou suas vidas inteiras, também, e que Otto denominou de Os Quatro Cavaleiros de Um Íntimo Apocalipse. Quatro mineiros, quatro escritores, quatro intelectuais, quatro amigos de diferentes temperamentos, que se juntaram pelo amor que tinham à literatura e que talvez superassem suas diferenças por isto e pelo amor que tinham uns aos outros, também – Isto fica muito claro na carta. É uma das histórias de amizade mais bonitas que eu conheço e sobreviveu a todos os apocalipses – pessoais e conjuntos – pelos quais passaram.
Sobre a carta, Fernando Sabino era um cronista por vocação e excelência. Mesmo os seus romances têm aquele toque de crônica natural, cotidiana, e com aquela verve poética que somente alguns escritores conseguem imprimir a este gênero literário. O Encontro Marcado deve ser um dos melhores romances brasileiros e nele ele meio que conta um pouco da história dessa amizade. O Menino no Espelho, seu romance mais autobiográfico, é também um dos mais sensíveis da nossa literatura. E a carta que me encantou segue este mesmo tom de prosa poética; é uma resposta a uma carta-poema (também belíssima) que Hélio Pellegrino escreveu para ele, falando de cada um desses amigos. Na época da carta eles todos tinham vinte e poucos anos e tinham acabado de tomar rumos diferentes na vida. Só iriam voltar a morar todos na mesma cidade já bem mais tarde, no Rio de Janeiro. Foi uma época, portanto, de separação e da consciência de que a vida estava mudando. Em sua carta Fernando Sabino assinala isso perceptivelmente emocionado. Fala do tempo, da vida atual, de saudade e da cumplicidade que só existe nas grandes e verdadeiras amizades. E fala isso de uma maneira tão tocante que emociona quem lê. É uma carta extremamente nostálgica para quem só tinha vinte e três anos quando a escreveu mas , como diz aquele antigo bordão, “saudade não tem idade”. A vida, de um jeito ou de outro nós a vivemos em qualquer idade, e cada idade tem potencial para criar sua nostalgia própria, eu creio.
Mais tarde, conversando com meu marido eu falei sobre a carta, que enviei para ele ler. A história da amizade dos quatro escritores nós já conhecíamos e ficamos divagando um pouco sobre isso: tempo, juventude, amigos da vida inteira – os nossos. Fizemos um tantinho deles, juntos e separados. Hoje eles formam uma mistura heterogênea de pessoas de fases e núcleos diferentes das nossas vidas, e dessa “maionese”, por assim dizer, tiramos apenas uns poucos com os quais já atravessamos alguns fins de mundo, como eu mesma gosto de dizer. Aqueles que nunca nos faltaram, nem nós a eles, nos bons e nos maus momentos; pessoas que nos conhecem a fundo e que sabemos que estarão sempre onde precisarmos que elas estejam, ainda que vivam a um oceano, a meio Brasil ou a três quarteirões de distância de nós. Aquelas com as quais às vezes demoramos a nos encontrar mas, quando encontramos, é como se tivéssemos visto pela última vez no dia anterior, no recreio do colégio. E com as quais perdemos a noção do tempo e ao mesmo tempo temos a consciência viva da passagem desse tempo, também. As presenças constantes, que se provam por elas mesmas e que nem o tempo nem a distância e nem circunstâncias quaisquer conseguiram deixar que virassem ausência na nossa vida. Pessoas que eu ainda quero ter perto de mim, mesmo que apenas em bons pensamentos, no dia que o mundo acabar de verdade, pelo tanto delas que me deram e pelo muito que dividimos, também. Se isto for um jantar de ontem, é um RO que vai sempre valer a pena ser requentado, eu penso.
Como acontece com todos nós, minha filha e seus amigos vão tomar caminhos diferentes e de alguns deles talvez ela se perca – isto sempre pode acontecer, como aconteceu comigo e a minha amiga. Mas ainda vai haver sempre uns poucos que vão permanecer seguindo com ela, também tenho certeza disso. Seja para uma conversa boa, para uma picanha, para um RO ou por um momento de precisão, mesmo, porque, por mais que o mundo dê voltas – e que a gente rode junto, também –, são poucas as coisas que, nessas voltas que ele dá, são tão confiáveis, reconfortantes e gratificantes quanto uma amizade antiga e verdadeira. Eu acho!
E por fim, para quem ainda não estiver com preguiça, segue aqui a longa e linda carta do Fernando Sabino. Ele foi o último dos quatro a morrer e publicou esta e outras trocadas com os outros três no seu livro Cartas na Mesa, por isso as notas e explicações no final. A carta-poema do Hélio Pellegrino também é muito bonita, mas não postarei aqui para não cansar demais. Dá para pegar por aí, pela internet.
“Rio [de Janeiro], 7 de junho de 1945
Hélio,
Vou te escrever uma carta amanhã. Uma carta mesmo de verdade, para o Murilo [Rubião] levar. São três horas da manhã, estou cansado.
Fiquei comovido com sua Carta-Poema. Você é um grande poeta, um grande amigo, um grande sacripanta.[1]
É engraçado, Hélio, não há meios de segurar o tempo, e eu queria atravessá-lo diagonalmente — violentar o tempo, resistir à sua torrente, deixar-me ferir de frente pela sua aspereza cheia de tantas contradições. É esquisito, é inacreditável, é antes de tudo tão comovente, como nós quatro tivemos ao mesmo tempo a consciência de um instante em suspenso entre o que deixou de ser e o que será de agora em diante. O Otto [Lara Resende] me escreveu, dizendo que daqui a dois meses perguntarão, atônitos: “Mas você viveu mesmo na época do Roosevelt? Você conheceu o Mário de Andrade? Conversava com ele, batia nas costas dele, ouvia a fala mansa e penetrante que ele tinha?” O Paulo [Mendes Campos] me escreveu dizendo que um tempo se encerrou e restará esquecido, chegou a hora de inaugurar os tempos novos, se preparar para eles, que eles chegaram com o fim da guerra ou sem o fim da guerra, com justiça ou sem justiça, com a morte do Mário ou sem a morte do Mário, eles chegaram para nós. E você escreveu este poema, Hélio. Eu escrevo o meu livro me debatendo, projetado infinitamente contra o tempo, matéria morta, para que ele desapareça de uma vez, consumado o nosso impiedoso desgaste. Ou então que vivifique, para podermos respirá-lo e nele nos enriquecermos.
Há uma luta de todas as horas contra o tempo que nos aniquila, Hélio. Uma agonia de quem quer achar o instante sem tempo naquele que é a Agonia ela mesma. Mas existe este instante, um instante apenas, em suspenso para além do tempo e para além da morte, estou sentindo agora — e é por sentir que eu procuro. Há qualquer coisa de comovente, perceba, que me faz sofrer tanta angústia jovem neste instante, trazer o coração tão cheio agora de uma alegria triste. Há qualquer coisa de comovente nesse encontro de nós quatro assim de longe — tão longe que estamos um do outro, você do Paulo, o Paulo do Otto, o Otto de mim, e no entanto tão juntos, que nossa respiração se confunde, nossas mãos se tocam no ar e há um resto de doçura no olhar de cada um, que é a lembrança dos outros três: Hélio, somos quatro e aqui estou perto de você, como numa noite sentados no meio-fio da avenida Bias Fortes, lembra? Como aquela cervejinha do Bar Cinelândia, a conversa entre nós dois, o Paulo e o Otto pairando. Tive pena de você um dia na casa do Eloy,[2] achei você tão triste, você não sabia. Te admirei naquele dia do parque em que treinamos um discurso perto do lago, achei você senhor de mundos e fundos, de estrelas e potestades como eu não era capaz. Tive vontade de dizer e não disse que te estimava feito um irmão naquele dia em sua casa que você me mostrou o artigo sobre os católicos. Achei que você era esse irmão, no dia em que me ajudou a sair da Igreja do Santo Antônio, quando eu havia sido operado — não falei nada.
Em cada palavra que não disse, em cada gesto de amizade que deixei de fazer, em cada encontro, quando as noites se findavam e as mulatas eram raras em detrimento de nosso priapismo insaciável — em cada olhar, em cada discussão, até em cada um dos argumentos matreiros que eu usava — em tudo houve, tenho certeza, um desejo de compreender e de estimar, de dizer que é assim mesmo, afinal estamos juntos, somos os mesmos, pensamos a mesma coisa. Pois tudo isso está aqui agora, escorre liquefeito em ternura, quebrando a rigidez alvar e burra deste papel e da distância. Hélio, o tempo agora é outro, a infância se recusa a renascer dos olhos e das mãos, se esconde, se aprofunda, somos homens, é preciso ir buscá-la por um caminho que será bem longo.
Parei a carta aqui, fiquei ouvindo um chorinho manso, vindo do quarto aqui ao lado — é minha filhinha chorando. É a coisa mais linda, mais — nem sei dizer — mais desesperadamente bela e triste: é de doer o coração a filhinha da gente chorando. Eliana está cada vez mais linda, nem três meses de nascida, ainda não sabe fazer nada, tem narizinho arrebitado, chorinho manso, olhinhos vivos, é uma coisinha se mexendo no berço — é minha filha… Quando você tiver uma filha — ou, vá lá, um filho (convém casar primeiro) vai ver que nem sempre é porém a toada da onda que vai e que vem…[3] Estou cansado, vou dormir.
Hélio, não tenho tempo de acabar esta carta. Já estou no dia seguinte, chegou a hora do Murilo Rubião ir embora. Passei a manhã com o Tristão [de Athayde], Murilo Mendes, [Gustavo] Corção e Edgar: estamos tratando de um semanário católico que fundamos, junto com uns alunos de Faculdade de Filosofia daqui: Murilo será o diretor. O jornal será em forma da “Mensagem”, não terá compromisso com a ação católica nem com o catolicismo oficial, nem com partidos políticos. Será combativo dentro desse espírito, apenas rigoroso sob o ponto de vista dogmático. Será mais ou menos o Murilo Mendes em forma de jornal — para você fazer uma ideia. Falei de vocês três, estão contando seriamente com uma colaboração. Parece que a coisa é boa, justamente aquele jornal que nós aí tanto queríamos fundar. Vamos ver.
Você é mesmo uma besta memorável. Onde está a ordem para eu receber em seu nome? Os cinquenta mil-réis já recebidos sem ordem nenhuma vou ver se mando junto com esta — vou ver ainda, não tenho certeza se vale a pena, se você merece.
O Otto me escreveu dizendo que teve uma discussão com você. Respondi dizendo que ele tinha razão e você estava errado, mas quando falei você, evidentemente que me referia ao você que ele me pintou na carta, um Hélio tresandado, tresnoitado e tresvariado.
Já te contei que vou para os Estados Unidos? Bem, depois te conto, que agora o tempo é pouco e tenho outra coisa para falar: escrevi ao Otto sobre uma viagem a Ouro Preto, você topa? Estou pensando em dar uma fugida depois das provas na Escola se o cartório permitir (tenho um escrevente que ficou doidinho de uma hora para outra, pensa que sou sobrinho do General Dutra). Estou pretendendo ir a Ouro Preto por uma semana, seria do cacete se vocês três fossem também. Passaríamos quatro dias mentecaptando por lá, um para cada mentecapto: pilequinhos discretos em homenagem aos inconfidentes, ladeiras inescaláveis, igrejas no mais tardar, puxaremos angústias enormes como carros de bois. Me escreva rápido, honesto e telúrico sobre isso, para prepararmos tudo. Vê se convence os outros dois. Mas me escreva logo, não me deixe ficar curtindo a ideia se ela não for realizável.
Meu livro vai indo, já terminei ele quinhentas vezes, estou na quinhentas e uma. Parece que vai. A conferência sobre o Mário foi feita para gente que praticamente nem sabia quem era o Mário, por isso foi difícil fazer coisa boa — em Ouro Preto te mostro (se houver Ouro Preto).
Sua Carta-Poema é a melhor coisa que você já fez, não tem dúvida. A parte do Paulo, então, é genial e a do Pajé[4] tão bonita, a minha me comoveu até as lágrimas. Tenho algumas sugestões para você consertar uns versos, mas só pessoalmente.
Diga ao Paulo que continuo vendo o emprego dele aqui no Rio: tudo assim muito vago, só porque ele não está aqui, se ele viesse já estaria arranjado.
O livro do João Cabral saiu hoje na coleção do Schmidt, agora sairá o do Vinicius. Seria excelente sair o seu também, vê se manda o mais rapidamente os poemas para eu mostrar ao Schmidt, que ele publica na certa. Não deixe de mandar, mesmo que esteja desorganizado. E além dos poemas que não conheço, mande também aqueles que você leu no parque para o Otto e para mim, quero ver de novo.
O Murilo está de partida, a conduzir gloriosamente sua careca para Curral del-Rei — depois de inconstitucionalíssimas discussões comigo, nas quais o maupassante, o cáfica, o poi e o servantes[5] não deixaram de fazer misérias. Coitado do Murilo, eu gosto muito dele.
— ordem de recebimento
— os poemas
— solução viável para o caso ouropretano
— perguntas sobre meu livro
— abraços, saudades e pororocas.
— Escrevi ao Paulo e ao Otto duas cartas colossais. Receberam? A besta do Otto ainda me chama de crápula. Estou vendo o Pajé, braços levantados, como um gigantesco Y com o corpo. Será Yone? Será ginástica? Serafim?
— O nosso Carlos Lacerda se converteu ao catolicismo, acho. Para variar, foi comigo almoçar no Mosteiro São Bento.”
[1] N.S.: Velhaco, patife.
[2] N.E.: Eloy Heraldo Lima, fraternal amigo que de certa maneira fazia parte ativa de nossa turma.
[3] N.E.: “A vida nem sempre é, porém/ Toada de onda que vai e que vem ” – Versos de Carlos Drummond de Andrade (ou de Mário de Andrade? – surgiu-me a dúvida).
[4] N.S.: Pajé era o apelido de Otto Lara Resende no grupo dos quatro mineiros.
[5] N.E.: Guy de Maupassant, Franz Kafka, Edgar Poe e Miguel de Cervantes, autores da predileção confessada de Murilo Rubião, e assim frequentemente citados por ele em nossas conversas.
Muito legal! Somos eternamente responsáveis por nossas velhas e boas amizades! Eternamente! Mesmo que o tempo faça o que é do tempo fazer, mesmo que o tempo afaste fisicamente estes amigos, é importante manter a chama sempre acesa. É nosso dever…
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Às vezes pode ser até a nossa salvação. Foi o que a raposa disse pro Pequeno Principe, não foi? Que um certo padre não nos escute😄
Obrigada
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