Sábado, 16 de maio de 2020 (quebrando um silêncio doído)
Eu já disse algumas vezes, aqui, que Gabriel García Márquez é um dos meus autores favoritos. Volto a ele sempre, e com a naturalidade de quem se lembra de falar de alguém chegado. Ele dizia que escrever muito era um excelente antídoto para evitar o pior e embora eu não saiba bem o que ele queria dizer com pior, muitas vezes também uso a escrita como remédio. O Gabo tinha um certo fascínio pelo tema da morte. Para ele a morte era uma grande injustiça, e muitos de seus personagens tristes sondam o mistério em torno dela e/ou convivem com os fantasmas tristes das tristes pessoas que foram em suas – também tristes – existências terrenas. Não sei se escrever evita o pior, mas, concordo que é remédio para muitos males. E aqui vamos nós mais uma vez, eu e Gata Preta, seguindo uma prescrição que não necessita de protocolos oficiais.
O Gabo gostava de falar da morte. Já eu, se puder escolher e tiver que sondar algum mistério, prefiro que seja em torno da vida. Gosto de pensar que ela é só (si me perdonas el juego de palabras, maestro) a crônica de uma morte anunciada, daquelas que ninguém imagina o final. E por isso penso que temos por obrigação tirar o melhor que pudermos dela – já falei isso por aqui algumas vezes, também. E um tempo atrás eu também disse, numa crônica daqui, que não gosto de falar sobre a morte. Que como toda latina, brasileira, nordestina e piauiense de origem católica que sou, não conseguia aceitar bem a ideia dela quando próxima a mim. Também falei, nas últimas postagens, que não gostaria de falar sobre coronavírus e todos os enigmas, controversias e tragédias que o acompanham. Mas o planeta inteiro gira em torno dele hoje e, numa dessas voltas que ele está dando, os dois temas acabaram se instalando, à revelia, no meio da minha família e levando com eles um dos meus irmãos.
A minha família é uma daquelas famílias numerosas, barulhentas e muito unidas, nas quais os verdadeiros laços sanguíneos se entrançam e acabam formando uma bagunçada rede onde o status familiar vale mais do que o grau de parentesco. Tem mãe que é irmã, avó que é tia, tio que é irmão, primo que é sobrinho, tia/madrinha que é mãe… Meu irmão era, na verdade, um tio, e foi o filho temporão de uma família que já estava supostamente encerrada; nasceu quando os outros já eram adultos e adolescentes. Minha avó já tinha parido nove filhos e não tinha muita paciência com crianças e minha mãe cuidou dele praticamente desde que nasceu. Quando ela se casou ele ainda era criança e meu pai praticamente o adotou, também. E assim ele cresceu como um irmão para nós, no meio dessa grande e estranha família. Cresci com a presença constante dele nas nossas vidas, nas nossas férias, nos nossos bons momentos e nos maus, também. Foi pelas mãos dele que cheguei aos universos de Zagor, Tex Willer, Fantasma e Zorro, porque eram essas as suas leituras nas nossas férias de fazenda. E mais tarde teve os livrinhos de espionagem da Brigitte Montfort, também. E os filmes de kung fu e de faroeste, paixões infantis e adolescentes que ele levou até o fim. Ele sabia do que cada um de nós gostava e, desde adolescente, sempre fazia questão de agradar a todos. Sabia o assunto que cada um gostava de falar, a comida preferida de todos nós e os hobbies pessoais de todos, também. Até as piadas ele sabia quais contar para quem. Quando viajava, na volta ele contava a viagem de maneiras diferentes para cada um. No meu caso, tinha dias em que eu recebia 34 fotografias de um mesmo lugar, com legendas do tipo “tu ia pirar nesse lugar”/ “só lembrei de ti aqui”. E as minhas lembrancinhas eram sempre pequenas coisas que ele achava “a minha cara”. Nossos amigos eram recebidos como família na sua casa e os dele, de vez em quando ele mandava para nós, também, com recomendações para mostrar tudo o que ele gostava daqui. Acho que nunca conheci ninguém que tivesse tanto prazer em agradar os outros apenas pelo simples prazer de agradar, mesmo. Também não sei de muitas pessoas no mundo que tenham sido sinceramente amadas e festejadas por quatro gerações de uma mesma família, desde seus pais e irmãos até a idolatria dos sobrinhos, filhos e, por fim, os sobrinhos-netos. Era um meninão crescido que entrava na brincadeira com todos. Isso sem falar da esposa, que pôde, em nome dela e de todos nós, demonstrar seu amor por ele até o fim. Falando assim, dessa maneira, fica parecendo um daqueles sermões prontos, encomendados para missas de sétimo dia e falados em tom graves por sacerdotes que, no mais das vezes, nem sabem de quem estão falando. Não é este o caso, aqui, no entanto. O que ele representou – e ainda representa – nas nossas vidas é a prova mais verdadeira da pessoa que ele foi. Mas sei que esta é uma verdade de uma história que só interessa a nós. E é por mim que eu falo dela aqui.
Quando perdemos alguém assim, e nas circunstâncias difíceis que cercaram esta perda, num primeiro momento o sentimento é de choque. Depois vem a incredulidade. Logo em seguida vem a primeira onda de dor e nós nos apegamos a ela porque parece ser uma maneira de retermos mais a presença. Depois vem a segunda grande onda, que é a dor da ausência, porque aí nós já olhamos lá pra frente lembrando lá de trás: E agora, como vai ser o Natal? Como será o próximo encontro de todos nós se nós não somos mais todos? E o que vai ser das nossas piadas familiares, agora que “nós não somos mais os mesmos, não” passou de piada certa para uma verdade difícil de encarar? Que o para sempre virou o nunca mais naquele velho relógio que marca o nosso tempo por aqui? E aí nós ficamos subindo e descendo essas ondas, ligamos uns para os outros para falar de nada e vamos nos conformando a viver um dia de cada vez, numa vagarosa e difícil tentativa de encher o vazio da ausência com todas as boas lembranças de nós todos juntos. Até o dia em que finalmente a saudade virar um pacote tão grande delas que vai ser como se a presença ainda estivesse ali. Ela estará sempre, de qualquer forma, mas um dia vai deixar de doer para se transformar numa saudade alegre, é o que eu espero.
No meu caminho em busca de aceitação e conforto, já andei novamente pelo budismo, pelo espiritismo e voltei a sentir, como não podia deixar de ser, o imenso peso daquela nossa cruz católica. Terminei por repetir para mim mesma (sem nem pensar se acredito mesmo nisso ou não) o pensamento raso/largo/profundo de que tudo é como deve ser. E apelei para o misticismo e para a fantasia, também, como não podia deixar de ser: Na hora do sepultamento, que não pudemos acompanhar, tivemos aqui uma chuva fina que fez aparecer no céu, quase na hora do por-do-sol, um arco-íris duplo simplesmente espetacular, daqueles que fazem o arco completo no céu. Minha filha fotografou um em São Paulo e meu primo, quando narrou para mim o funeral, falou de uma chuva fininha e de um arco-íris lá, também. E aí eu saio dizendo para todo mundo na família que foi o Céu se enchendo de cores para recebê-lo e não me importo que isso pareça ridiculamente infantil para quem tem 50 anos nas costas. É a imagem que vai ficar para mim desse dia e uma que me conforta e acalma a alma. E ele teria gostado da ideia, tenho certeza.

Mas nós temos que saber quando é a hora de dizer adeus. “Se o adeus demora” – diz o mestre Oswaldo Montenegro – “a dor no coração se expande”. As últimas mensagens que troquei com meu tio/irmão, já no hospital e pouco antes de ele ir para a UTI, foram sobre duas lembranças boas da nossa vida naquela fazenda da nossa infância, e do meu avô, seu pai. Apenas dois meses atrás eu tinha me despedido dele com um abraço forte e um sorriso no rosto, combinando o próximo encontro na sua casa, em setembro. Foi um adeus breve depois de um encontro muito, muito feliz. Quem ia pegar um vôo era eu e não tinha comigo pincéis de aquarela, mas é com esta belíssima passagem de Cem Anos de Solidão, do Gabo, que eu finalmente me despeço dele, aqui. Na última viagem que fizemos juntos, uns dois anos atrás, ele não me deixou perder uma só foto de flores, passarinhos e outros bichos que foram aparecendo pelo caminho, apontando todos para mim. E é assim que eu quero sempre me lembrar dele: vibrando como a criança grande que era e dividindo conosco o que de bom ia vendo por aí, enquanto a vida ia passando pela janela. O poema da fugacidade é um poema que por si só se escreve, mas cada um de nós pode dar a ele seu próprio acabamento. O desse meu irmão foi bonito! E é um daqueles que, certamente, nós nunca vamos esquecer.
“Álvaro foi o primeiro a seguir o conselho de abandonar Macondo. Vendeu tudo, até a onça cativa que zombava dos transeuntes no quintal da sua casa, e comprou uma passagem eterna num trem que nunca acabava de viajar. Nos cartões postais que mandava das estações intermediárias, descrevia aos gritos as imagens instantâneas que tinha visto pela janela do vagão, e era como ir rasgando em tiras e jogando ao esquecimento o longo poema da fugacidade: os negros quiméricos nos algodoais da Louisiana, os cavalos alados na grama azul de Kentucky, os amantes gregos no crepúsculo infernal do Arizona, a moça de suéter vermelho que pintava aquarelas nos lagos de Michigan, que lhe deu com os pincéis um adeus que não era de despedida mas de esperança, porque ela ignorava que estava vendo passar um trem sem regresso.”
*Vão-se os papéis, ficam as histórias. De todas as que eu já escrevi aqui, esta foi a que mais me custou contar.
Eu acredito que talvez o pior que a escrita pode evitar é o sufocar com as palavras não ditas, é engolir tanto o que poderia ter dito que não se consegue dizer mais nada. Meus sinceros sentimentos pela sua perda, eu tenho certeza que toda essa emoção que você expôs nesse texto ele pôde sentir na vida terrena. Que a espiritualidade o receba de braços abertos e que sua passagem seja tranquila ❤
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Você tem toda razão. E o bom de escrever é que às vezes nós temos a grata satisfação de ver que nós fizemos entender.
Muito obrigada pelo comentário.
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Lindo texto, Lysya!!!
Você com o sempre, muito sensível e verdadeira. Na verdade cada um escolhe o pano de fundo da sua vida. Alguns preferem o das saudades lamentosas, outros, porém, mais ligados no terreno da fé, escolhem o pano luminoso da esperança.
Quando vi aquele lindo “Arco Íris ” pensei como o Avelar é sortudo, está sendo recebido como merece.
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Lindo texto! Uma despedida, mas também um aceno de esperança! Prefiro dizer um até mais ver…
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Avelar era e continua sendo um par ímpar, para todos nós! 🙌🙏
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Torço muito pra que chegue a hora da saudade boa, Lysia. Vc fez um retrato perfeito de tudo o que ele era. Sei que o tempo vai trazer alívio e acredito que realmente um até breve. Certeza que nos encontraremos um dia.
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Que linda homenagem Lysia. Com certeza Avelar amou suas lindas palavras. Vai demorar um pouco pra vocês deixarem de sentir aquela saudade doída pois sei bem como são os encontros na sua casa. No entanto, um dia chegará a saudade sem dor , sem lágrimas. 🙏🏻😘❤️
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