Sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
(Janeiro segue e a vida segue também)
E o vendedor de enciclopédia, heim? Quem se lembra dele? Umas duas vezes por ano, faço uma arrumação na biblioteca de casa, para limpar e depois organizar a bagunça do período. O trabalho que seria feito em uma tarde, no máximo, acaba rendendo dois, três dias, porque eu me perco no meio de livros, anotações do caderninho no azul, fotografias antigas… Na última arrumação, não sei por que, veio junto com tudo isso a lembrança dessa figura.
Eu era muito criança, na época, mas ainda me lembro daqueles homens bem vestidos e arrumados que apareciam lá em casa, carregados de pastas com folhetos coloridos, mostrando fotos ou exemplares de lindos livros em ricas encadernações, e com uma conversa que devia ser muito convincente, porque acabavam sempre empurrando alguma coisa. Era o Brasil dos anos 70, com todas as censuras, sujeições e restrições do regime militar. Um tempo em que os livros chegavam até nós, nas cidades pequenas do interior e nas capitais menos desenvolvidas, muito mais por meio destes bem dispostos e determinados vendedores ambulantes do que através das escassas e mal distribuídas lojas físicas de então. Não tenho como me lembrar de muitos detalhes, mas me lembro bem de minha mãe sentada no sofá da sala – o que já era, por si só, uma coisa inusitada de se ver – com olhar encabulado, perdida no meio daquele mar de papéis, e respondendo, vacilante, perguntas sobre os filhos, como idade, série escolar, etc. As falas deles já vinham prontas, claro (eles muito provavelmente nunca leram nada daquilo e seu interesse era o lucro da comissão, meramente), e de vez em quando um de nós era chamado para ver ou responder alguma coisa, ser elogiado pela esperteza e inteligência e assim aumentar o apelo para a venda. No final era sempre a mesma coisa: Mamãe dizia que iria conversar com Papai e a definição ficava para dali a alguns dias, deixando a nós todos, filhos e vendedores, em grande expectativa. Eles saíam, mas não sem antes perguntar se ela não teria mais alguém para indicar – pobres amigas da Mamãe! -, o que ela fazia prontamente e de boa fé.
Naquele tempo, enciclopédias geralmente não faltavam nas casas onde houvesse alguma condição financeira para isso. Elas eram, em alguns lugares, a única fonte de pesquisa disponível e parte da promessa de futuro dos filhos parecia estar vinculada ao conteúdo que elas poderiam acrescentar e ao interesse que poderiam despertar. Ou assim foram convencidos meus pais por aqueles perseverantes vendedores. O “sacrifício” financeiro adicional (além da escola) que deixavam bem claro estar fazendo, foi mais uma maneira que eles acharam para mostrar o que queriam e esperavam de nós. Mas havia outros itens nos catálogos deles, também. Dos que eles conseguiram passar lá para casa, além da infalível enciclopédia – os pesados volumes da Grande Enciclopédia Delta Larousse – eu me lembro ainda destes: uma Bíblia Sagrada, lindamente encadernada, os dois enormes volumes da Galeria Delta da Pintura Universal, a Enciclopédia Codex de Cozinha, a coleção completa do Sítio do Picapau Amarelo, o Grande Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa e a obra completa de Eça de Queiroz em papel bíblico. Para cada item desta pequena e diversificada biblioteca eu teria uma crônica a fazer, porque todos eles foram influências marcantes na minha vida, mas isso vai ficar para uma outra vez.
Volto aos meus pais. Eles, que nunca frequentaram uma faculdade, acreditaram no poder daqueles livros para ajudar a abrir nossos caminhos. Se titubearam em relação a isso, em algum momento entrou em cena um vendedor de enciclopédia para lhes falar sobre incentivar nosso interesse e ajudar a desenvolver nosso potencial. Meus pais conseguiram, no fim das contas, dar uma educação formal completa a todos os filhos. Acho que teríamos chegado lá, mesmo sem aqueles livros, mas, para ser bem justa, penso que tenho que dar algum crédito a eles, sim! Eram só livros com começo, meio e fim, um universo relativamente restrito, mas o leque de possibilidades de conhecimento sobre o mundo que eles abriram para nós, nenhuma das escolas que frequentamos se empenharia em mostrar naquela época. Se meus pais acreditaram neles para abrir caminhos, eu acredito que eles foram fundamentais para abrir nossas mentes. Despertaram – pelo menos em mim – uma curiosidade que acabei levando para a vida.
Hoje em dia o conhecimento humano está praticamente todo condensado num universo que não ocupa espaço físico e não acumula poeira nem mofo. O conteúdo da internet é ilimitado e ninguém precisa mais pesquisar por verbetes: o Google responde à pesquisa, com incontáveis possibilidades, a um simples clique. Mesmo com tudo isso, e no entanto, o interesse das pessoas parece ser muito mais restrito, mal guiado ou aleatório. Alguns papéis foram trocados, também. Em uma mesma realidade privilegiada de ensino particular, hoje a maioria dos pais parece esperar que as escolas mostrem os caminhos para seus filhos e as escolas, por sua vez, sobrecarregam seus alunos com novos conteúdos (boa parte deles provavelmente dispensável, arrisco dizer), ao tempo em que vão subtraindo gradativamente, à medida que as séries avançam, o tempo deles para se aprofundar nesses ou em quaisquer outros conteúdos. Mesmo com tanto conhecimento disponível, a cultura geral parece nadar em águas rasas. E nem existem mais aqueles lendários vendedores com lábia infalível, que batiam de porta em porta para tentar convencer e incentivar, assim, mesmo que por interesse próprio, as pessoas a mergulhar fundo nas coisas do mundo. Que pena!
Claro que existe uma certa nostalgia nossa. Mas hoje o mundo está a nossos pés, ou melhor, a um clique dos nossos dedos. Pena que isto é para o bem e para o mal. Outras coisas vieram no pacote, e estas outras coisas afastam a cada dia milhares de jovens de um bom livro, de um conhecimento pesquisado e sério, da magia das páginas e do cheiro dos livros. Mas a modernidade sempre vem, e temos que trazê-la para o nosso lado…
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Tenho certeza que os livros e a enciclopédia tiveram sim uma contribuição importante para nossa formação, Lysia. E concordo com você, quando diz que hoje, apesar da fonte inesgotável de informações, a cultura nada em águas rasas!
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Nossos filhos conheceram pouco o que é fazer uma pesquisa e, a partir dela, um bom trabalho escolar, consultando livros em papel. Entretanto, mundo evoluiu e as tecnologias vieram para facilitar a vida; a internet, o Google e a miríade de aplicativos disponíveis são ferramentais essenciais para a vida moderna, em todos os seus aspectos. Os que conhecemos bem a “era das enciclopédias físicas” muitas vezes sentimos saudades.
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Mauro, falar contra a internet seria o equivalente a querer voltar às cavernas. A saudade que eu tenho, na verdade, é do tempo que as pessoas tinham interesse na cultura geral.
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