Entre Macondo e Pasárgada – Uma crônica que deveria ter saído ontem

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Quarta-feira, 07 de março de 2018 (ah, o tempo que eu não tenho…)

“Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização.” (M. Bandeira, Itinerário de Pasárgada)

“Era na verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e ninguém tinha morrido ainda” (G.G. Márquez, Cem Anos de Solidão)

Ontem foi aniversário do Gabriel Garcia Márquez, o Google me lembrou bem cedinho. No ano passado, seu romance mais célebre, Cem Anos de Solidão, completou 50 anos de lançado. Dentre as muitas reportagens que li a respeito na época, uma em especial, publicada pela Folha de São Paulo, chamou mais minha atenção: A que contou as circunstâncias da descoberta do romance e de sua publicação. A história é longa, mas é de arrepiar a parte que conta a reação do editor argentino, que após ler uma parte do manuscrito pela primeira vez, chamou um amigo escritor para escutá-lo recitar o romance em voz alta, jogando para o alto, na chuva, em puro êxtase, cada página que terminava de ler. Nada nem ninguém poderia dizer mais sobre a emoção de se descobrir este grande livro. Se para um leitor relativamente sensível é assim até hoje, imagino como foi para um grande conhecedor, dar de frente com o inusitado deste romance fantástico. É uma cena que, embora possa imaginar perfeitamente, eu gostaria de ver virar filme.

Comecei a ler Gabriel García na adolescência, justamente com Cem Anos de Solidão, pouco tempo depois que ele ganhou o Nobel de literatura. Li os outros posteriormente, alguns só depois de adulta, mas a tinta que ficou gravada na pele da adolescente estranha que eu fui foi a do primeiro. Ontem, no meio das reportagens sobre o autor, li uma do El País que para mim foi a síntese mais perfeita desse romance: “(… )Cem Anos de Solidão, em que Márquez edifica e dá vida ao povoado mítico de Macondo e à legendária estirpe dos Buendía: um território imaginário onde o inverossímil e o mágico não são menos reais do que o cotidiano e o lógico. É assim que se descreve o postulado básico do que depois seria conhecido como realismo mágico e que constitui uma síntese romanceada da história das terras latino-americanas que, no fundo, também é a parábola de qualquer civilização, de seu nascimento a seu ocaso.”. Esta é a verdade incontestável do retrato de um povo tão verdadeiro quanto inacreditável, que o livro faz. O artigo conta, ainda, que ele teve um “lampejo” do livro no trajeto de uma viagem pelo México, durante o qual ele finalmente conseguiu vislumbrar o ‘romance que estava dando voltas em sua cabeça durante dezessete anos’. Dezoito meses depois ele terminou o “para sempre’ (valeria até uma hashtag) Cem Anos de Solidão. Permanece como um dos meus livros preferidos, e seu autor… bem, enfrentando o mundo de hoje, onde a moda é julgar uma obra pelo seu autor, tenho que dizer que ele permanece também.

Gabriel García Márquez foi um ícone da esquerda do seu tempo. Foi engajado, foi festejado, foi odiado, foi exilado… e nenhum outro membro da chamada elite intelectual latino-americana esquerdo-simpatizante foi mais leal a Fidel Castro do que ele, segundo conta a história. Seguiu à risca a orientação do discurso que o ditador fez aos intelectuais de Cuba no início de seu governo: “Dentro de la revolución, todo; contra la revolución, nada”. Calou. Foi omisso e, portanto, conivente, em relação à violação de direitos humanos e de cidadãos na Ilha, aqui incluídos alguns de seus pares de ofício. Não sei qual teria sido a moeda de troca para tanta fidelidade – fazendo, aqui, um trocadilho infame. A sedução da vida de luxo e mordomias que ele tinha em Cuba? A lealdade que está implícita em toda amizade verdadeira? Ou ainda, a crença cega numa ideologia? Destas três alternativas, tenho que dizer que acredito piamente na capacidade mundana dos seres humanos, portanto acho plausível a primeira. Também acredito no poder de uma amizade verdadeira, ainda que isto não reflita motivos justos. Agora, em relação à crença cega numa ideologia, ainda mais quando se trata de uma mente privilegiada como a do Gabo, nisto eu deixei de acreditar há tempos. A realidade por trás dessa história ninguém nunca saberá ao certo, de qualquer forma. Ele mesmo dizia que todos os indivíduos possuem três vidas: a pública, a privada e a secreta. Sua vida pública é de público conhecimento; da vida privada, ele contou o que quis contar, no primeiro volume de sua auto biografia, e a secreta, essa ele não viveu para contar – nem eu acho que contaria.

E o que eu quero dizer com isso tudo, no aniversário dele? Nada muito relevante, somente aproveitar o gancho para dizer uma coisa que eu repito sempre que uma conversa cai nesse terreno: não consigo julgar uma obra pelo que foi ou pelo que é seu criador. Não consigo desgostar de um livro fantástico que li, de uma música linda que ouvi, de um filme extraordinário que vi porque seus autores têm uma postura política, uma moral ou um comportamento duvidosos. Pronto, falei! Sei que isso me transforma atualmente numa alienada social, só para dizer o mínimo. Não me importo! É das poucas coisas polêmicas sobre as quais eu converso em público, mesmo correndo o risco de apanhar. Não tenho mais nenhuma paixão política ou ideológica e não vou usar este espaço para isso, mas, assim como o Gabo, boa parte dos grandes escritores e poetas (citando só o mundo das letras, por assim dizer) que fazem ou fizeram parte da minha vida em algum momento – Pablo Neruda, Saramago, Hemingway… – defenderam, também, em alguma época, alguma ”esquerdologia” no mundo. Ainda na via da esquerda, Milan Kundera e George Orwell construíram uma obra estupenda em cima de sua própria decepção com a ideologia. Tem uma outra parte formada por emproados cidadãos supostamente de direita – aqui entrando, com relevância, o grande Machado de Assis – , por pura comodidade e conveniência. Alguns, como Oscar Wilde, misturaram e moldaram ideologias em benefício de sua própria arte (ou modo de vida, talvez). E ainda havia aqueles – e aqui eu só consigo me lembrar do Pessoa, embora só descobrisse isso recentemente –, que tinham sempre uma crítica pronta para qualquer que fosse o regime político vigente. Todos estes foram, no entanto e sob minha leiga percepção, agudos e argutos observadores de seu tempo. Dos grandes nomes da música, literatura, pintura e cinema, uns participaram ativamente, com sua arte ou com seus braços e pernas, mesmo, de movimentos e revoluções. Outros usaram as revoluções como palco de sua própria projeção artística, enquanto tolos pagavam a conta. E outros preferiram só tomar um whiskyinho enquanto viam a banda passar. Seja como for, para mim isso tudo interessa apenas como curiosidades e histórias de vida que são, mas não interfere em absoluto no meu julgamento de suas obras. Sobre as obras eu discorreria durante horas; sobre os autores, comento, critico, deploro… e com alguns deles eu talvez não tomasse nem um cafezinho, mas separo o homem (e a mulher, também, ó mundo chato!) da sua obra. Dou preferência ao que conseguiram transmitir e à maneira muitas vezes excepcional pela qual fizeram isso.

Em relação ao Gabo, seus livros contam a história da América Latina. Retratam esta história em toda a sua miséria, solidão, desencanto… e com todas as nuances de seus generais e coronéis! Quando descreve os sentimentos quase palpáveis de um povo sob o jugo de um regime em que a democracia não existe (se é que ela existe em algum lugar) e onde, como em todos os regimes do mundo, só escapam bem os poderosos de sempre, não falta nada do nosso povo ali. É um retrato isento de culpas ou piedades, em formato cru, como se diz em fotografia, ao qual ele deu seu toque de gênio na edição, revelando ao mundo, em todos os seus detalhes, o fantástico que já estava ali. Dizem que ele submetia a Fidel Castro todos os manuscritos de seus livros, antes mesmo de os enviar para sua editora. Se houve alguma censura por parte desse amigo (embora esta amizade seja mais recente do que alguns dos seus livros), não foi uma censura que o impedisse de mostrar, fantástica e realisticamente, a miséria do povo ao qual se relaciona. Ali estamos todos nós, o resignado povo destes tristes trópicos, sofrendo com o calor opressivo, espantando moscas, sufocando sonhos e odiando nossos dirigentes – generais ou não – desde sempre.

O tempo ensina algumas lições às quais nós temos que aprender a prestar atenção. A História, quando bem contada, ajuda a fazer o discernimento. Não leio mais procurando por heróis. A esta altura da vida os meus, como falei um tempo atrás para um amigo que estava quase sofrendo alucinações, já morreram todos. Ou de overdose ou de causas naturais, mesmo. Hoje eu não sei se tomaria um chá de folha de coca com o Gabo, mas sua obra é, para mim, algo que não se põe em questão. Quando ele morreu, escrevi um pouco sobre isso e acho que vou sempre pensar assim. Para ontem, se fosse dizer alguma coisa sobre ele, resumiria assim: Gabriel García Márquez: Se vivo fosse, hoje estaria completando 91 anos. Nasceu em Aracataca – Colômbia; fundou Macondo – um povoado qualquer ou qualquer povoado do interior da América Latina. Mas, gostava de viver, mesmo, era em Pasárgada – Cuba, porque lá era amigo do Rei. Formulou, numa epifania, no trajeto entre a Cidade do México e Acapulco, Cem Anos de Solidão. E, ainda sobre Macondo, disse uma vez: “– Por sorte, Macondo não é um lugar, mas sim um estado de espírito que permite a cada um ver o que quer ver e como quer”.

Salve, mestre! Pelas Macondos de cada um de nós, salve!

2 comentários em “Entre Macondo e Pasárgada – Uma crônica que deveria ter saído ontem

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