Quinta-feira, 29 de março de 2018
“A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem).”
(Manoel António Pina)
A rainha Elizabeth II tem um Land Rover para andar no campo, tem a primazia da Bentley toda vez que um modelo clássico novo é lançado e tem um jaguar verde (o meu preferido) que ela ainda dirige de vez em quando. Eu não tenho nenhum dos três mas saio dizendo por aí que ela e eu temos os mesmos gostos para carros. Outro dia, numa entrevista realizada nos jardins de Buckingham, para um documentário sobre o meio ambiente, o repórter disse a ela que daqui a 50 anos as árvores daquele jardim provavelmente seriam muito diferentes devido ao efeito do aquecimento do planeta. Ela respondeu a isto brincando: “Provavelmente, mas eu já não estarei mais aqui”.
Atualmente parece que existe dia para tudo e 21 de março é o Dia Internacional da Poesia. Por coincidência o assunto caiu em poesia numa conversa do grupo da família, lá em casa, na semana passada. Com dois filhos, apenas, e a mais velha morando fora, esses bate-papos às vezes passam um pouco a impressão de que ainda estamos todos juntos, os quatro, rindo e conversando em volta da mesa da cozinha. Caiu em poesia porque meu filho falou uma frase bem poética para tentar explicar um ponto de vista. Mas foi sem intenção, só a maneira que ele achou para se expressar, como ele mesmo explicou. Eu disse a ele que a verdadeira poesia saía assim e me lembrei de uma vez que ele mesmo falou que fazer poesia era dizer o óbvio de maneira bonita. Minha filha mencionou um filme onde um personagem perguntava a outro se era verdade que ele fazia poesia, ao que este respondia, de uma maneira bem babaca, que era a poesia quem o fazia, na verdade. E nós continuamos assim, rindo, poetando e discutindo as origens da poesia até minha filha mandar uma poesia escatológica de rua, que ela tinha fotografado.
Folheando um livro do Drummond no fim de semana eu li um poema, Procura da Poesia, que me lembrou dessa conversa. Desdizendo, em princípio, o que meu filho falou sobre o óbvio contado bonito, começa dizendo tudo o que não se deveria usar para fazer poesia, e do meio pro fim acaba narrando o ‘parto natural’ de um poema, por assim dizer. Recomenda um mergulho fundo no reino das palavras, “que é onde se encontram os poemas que esperam ser escritos”; diz que as palavras estão ali, “em estado de dicionário” aguardando o poema, mas que para libertá-las de lá, é preciso que se conviva com os poemas antes de escrevê-los. Que se sinta. Do contrário serão só palavras e cairão no nada.
Na minha veia de Paula Toller (eu tenho pressa e tanta coisa me interessa), li um artigo muito interessante outro dia, que fala, numa tacada só, sobre literatura, poesia, imaginação e inteligência artificial (IA). A autora, Lígia G. Diniz, começa falando da sensação de ‘estar faltando alguma coisa’ num filme (mesmo num filme excelente) a que assistimos depois de já termos lido o livro bom de onde saiu a história. Chega à conclusão que o que falta no filme somos nós, ou o que nós imaginamos da história quando a lemos. No texto ela cita, de um outro autor, que em meio a esse bombardeio de informações que recebemos todos os dias, o mundo nunca precisou tanto ler ficção e poesia quanto hoje, porque “nunca precisamos tanto de faíscas que ponham em movimento o mecanismo livre da nossa imaginação”. Pelo que entendi, ela acha que nenhum outro tipo de arte tem tanta potência escondida para despertar os nossos sentidos quanto a palavra impressa. Daí ela deriva para um mini ensaio um pouco complexo sobre esse poder da literatura, e no final fala de um programa da Universidade de Stanford, no meio do Vale do Silício – um dos principais centros de estudos sobre inteligência artificial no mundo – que oferece e incentiva, desde 2014, a prática de dupla graduação em computação e em uma área das ciências humanas. Conta uma parte de uma palestra de um estudante (Sam Ginn) do terceiro ano de graduação dos cursos de Ciência da Computação e de Literatura Comparada, que além disso ainda atua num laboratório de pesquisas de IA (a um salário, aos 20 anos, que faria inveja a qualquer pesquisador graduado ou pós-graduado brasileiro). Sua área de interesse principal é a replicação artificial da consciência humana e seus estudos baseiam-se principalmente na obra, não de um neurocientista, mas do filósofo Martin Heidegger.
Fiquei curiosa (sempre eu a Paula Toller) e fui pesquisar sobre o programa de Stanford. Ficção científica não é nem nunca será meu gênero preferido, seja na literatura, no cinema ou onde quer que ela figure, mas sempre soube apreciar as pérolas que surgem nesta área de tempos em tempos. A IA vem sendo explorada neste universo de ficção, assim como no da ciência, há muito tempo e não é nenhuma novidade mas, no que tange ao que já se tornou real dentro disso – e a palestra do rapaz de Stanford falava sobre isso –, nunca deixa de me impressionar. Muitas vezes eu acho que minha mente ainda está no tempo em que isso era apenas uma possibilidade e foi com um certo assombro que li sobre um programa conjunto entre as Universidades de Stanford e de Massachusetts e o projeto Google Brain, que desenvolveu um sistema de IA para gerar sentenças textuais automaticamente, com o objetivo de completar poemas. Eu não saberia explicar o bê-a-bá disso porque sou da invencionática, não da informática, como o Manoel de Barros, mas, pelo que entendi, consiste mais ou menos no seguinte: você digita para um software a primeira e a última frase do que seria um poema e a IA completa o restante baseada num arquivo (Book Corpus) que reúne em torno de 12000 e-books. A maioria desses livros é formada por obras de ficção, com aproximadamente 80 milhões de frases, as quais foram utilizadas para o ‘treinamento’ do sistema. Este sistema é ‘ajudado’ por uma extensão criada pelos pesquisadores para uma rede neural artificial de modelagem de linguagem, que treina a IA para fazer as associações baseadas no conteúdo e conhecimento disponíveis. Trazendo para a lógica que eu conheço, é como se o sistema desenvolvesse a receita de poesia do Drummond e a IA mergulhasse no dicionário das palavras e frases disponibilizado, e dali tirasse sua própria interpretação, associando-as às demais e ‘criando’, assim, o poema. Isto já seria, por si só, surpreendente, mas o que espanta mais é estes poemas fazerem algum sentido e transmitirem sentimentos como a melancolia, como eu vi em alguns dos exemplos mostrados.
Eu leio poesia quase todo dia há muito tempo. O que antes era só um prazer, hoje é quase uma necessidade. Ajuda a trazer leveza ao meu dia a dia e funciona, ora como uma brisa fresca, ora como um exaustor, no ar viciado da caverna escura, sem janelas, onde eu passo o dia trabalhando. E quanto mais as coisas ficam difíceis, mais poesia eu leio. É um hábito que eu pretendo levar para a vida. Não creio que meu chefe também leia poesia, mas ele lê muita coisa e agora parece que tem mais tempo livre porque anda podendo trocar figurinhas no WhatsApp. Um dia desses ele me mandou uma reportagem sobre um robô humanoide criado na China, que faz atendimento clínico como médico e que, entre outras coisas, também faz poesia. Eu já tinha lido sobre o programa de Stanford e respondi simplesmente que não me espantava em absoluto um robô fazendo raciocínios clínicos; a medicina de massa está, de certa forma – e falo isso do lado de dentro desta massa, sem qualquer juízo de valor e sem entrar no mérito desta questão – robotizada há tempos. Mas que, um robô fazendo poesia – e aqui completo o raciocínio –, aquela poesia que o meu filho diz que diz o óbvio, só que de uma maneira bonita, que o personagem do filme diz que “é quem o faz”, que o Drummond disse que tinha que sair do dicionário, mas também da alma, e espontaneamente, e que dá a mim e aos que sabem do que eu falo, um alento para todo dia, isto para mim era algo de fato assombroso.
Na palestra do geniozinho de Stanford ele fala ainda sobre os esforços e a ambição “virtualmente irrestritos” dos cientistas no que diz respeito a inventar o futuro, e alerta para a necessidade de abertura de um diálogo com a área das “ditas humanidades” para a discussão desse futuro. Menciona, por fim, que “entre os futuros imaginados por jovens como ele está a possibilidade concreta de uma existência em que a morte terá sido derrotada pela ciência”.
Não tenho pretensões de derrotar nem o tempo nem a morte; o mundo é um lugar bonito, mas a humanidade cansa. Entre os sonhos que eu tenho para o futuro está o de uma velhice serena (em algum lugar que não faça calor), e no meio desta serenidade eu antevejo a poesia. Apesar de tentar acompanhar o que é novo no mundo tecnológico (porque o humano não muda), não quero chegar a essa velhice lendo uma poesia gerada por fertilização in vitro e nascida através de cesareana ou a fórceps, fazendo ela sentido ou não. Um computador replicando a consciência humana faz com que eu pense que ele poderá também replicar a nossa alma, a nossa essência. E isto, sim – vou dizer à minha filha depois – é escatológico!
E aqui meu humilde espírito volta, finalmente, àquele outro não tão humilde assim, a Rainha Elizabeth, para concluir, estreitando ainda mais aqueles nossos laços de afinidade: Daqui a 50 anos eu também já não estarei mais aqui. Felizmente.
Para quem ainda tiver fôlego, Este É O Prólogo, Federico García Lorca
Deixaria neste livro
toda minha alma.
Este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.
Que compaixão dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam!
Que tristeza tão funda
é mirar os retábulos
de dores e de penas
que um coração levanta!
Ver passar os espectros
de vidas que se apagam,
ver o homem despido
em Pégaso sem asas.
Ver a vida e a morte,
a síntese do mundo,
que em espaços profundos
se miram e se abraçam.
Um livro de poemas
é o outono morto:
os versos são as folhas
negras em terras brancas,
e a voz que os lê
é o sopro do vento
que lhes mete nos peitos
— entranháveis distâncias. —
O poeta é uma árvore
com frutos de tristeza
e com folhas murchadas
de chorar o que ama.
O poeta é o médium
da Natureza-mãe
que explica sua grandeza
por meio das palavras.
O poeta compreende
todo o incompreensível,
e as coisas que se odeiam,
ele, amigas as chama.
Sabe ele que as veredas
são todas impossíveis
e por isso de noite
vai por elas com calma.
Nos livros seus de versos,
entre rosas de sangue,
vão passando as tristonhas
e eternas caravanas,
que fizeram ao poeta
quando chora nas tardes,
rodeado e cingido
por seus próprios fantasmas.
Poesia, amargura,
mel celeste que mana
de um favo invisível
que as almas fabricam.
Poesia, o impossível
feito possível. Harpa
que tem em vez de cordas
chamas e corações.
Poesia é a vida
que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva
nossa barca sem rumo.
Livros doces de versos
são os astros que passam
pelo silêncio mudo
para o reino do Nada,
escrevendo no céu
as estrofes de prata.
Oh! que penas tão fundas
e nunca aliviadas,
as vozes dolorosas
que os poetas cantam!
Deixaria no livro
neste toda a minha alma…
(Federico García Lorca, in ‘Poemas Esparsos’)
Adoro poesia, mas das que brotam, não das pasteurizadas, advindas ou não de gênios da informática (aliás, nem de gênios gosto). Esta poesia, a que brota, nunca morrerá…
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Muito profundo! A inteligência artificial parece que vai realmente produzir coisas incríveis. Algumas muito boas, outras assustadoras.
Mas creio que a sensibilidade do ser humano não poderá nunca ser igual à de um robô.
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