Crônica de avião para a Páscoa

Domingo, 1° de abril de 2018 – domingo de Páscoa

“Os Profetas Isaías e Ezequiel jantaram comigo, e perguntei a eles o que lhes trazia tanta segurança para afirmar que Deus falara com eles; e se na época não haviam sentido mêdo de estarem enganados, tornando-se motivo de imposição. Isaías respondeu: “Não vi, nem ouvi, nenhum Deus, em minha finita percepção corporal; mas meus sentidos perceberam o infinito em tudo, e eu estava persuadido, e continuo, de que a voz da honesta indignação é a voz de Deus. Não me importei com consequências, apenas escrevi.”
Então perguntei: “Estar persuadido de que algo é, faz com que algo seja?” Ele respondeu: “Todos os Poetas acreditam que sim, e nas eras da imaginação esta forte persuasão removeu montanhas; mas muitos são incapazes de se persuadir de qualquer coisa.”(William Blake, The Marriage Of Heaven And Hell)

Domingo de Páscoa e eu literalmente nas nuvens, voando para Roma. Dois anos atrás, num outro Domingo de Páscoa, voando de Belém para casa, em Teresina, comecei a escrever esta crônica de avião, que depois arquivei. Eu pensava no sentido religioso da Páscoa e onde eu me encaixava nele hoje em dia. As lembranças chegaram com facilidade, como é comum acontecer quando tenho estes insights.

Vinda de duas típicas famílias nordestinas rurais, tradicionalmente católicas e tementes a Deus, fui batizada e educada dentro dos preceitos desta religião. Minha educação escolar passou por um colégio de freiras e dois de padres, fiz a Primeira Eucaristia e assistia à missa aos domingos até o início da adolescência. No meu tempo de pré – adolescente no Colégio Marista, em São Luís, fiz parte de um grupo mirim de jovens, o pré-JUMA, que era uma espécie de escada para ingressar no JUMA (Juventude Marista), o grupo de jovens oficial do colégio. Este, talvez, tenha sido meu período de maior proximidade com a Igreja Católica. Nós nos reuníamos uma vez por semana, depois da aula, numa pequena capela de orações que era um dos meus lugares preferidos no colégio. Lá nós líamos e discutíamos a Bíblia e tínhamos debates sobre várias questões religiosas e sociais, num nível bem básico, próprio à nossa idade, coordenados por alunos mais velhos, membros do JUMA, e por algum professor do Colégio, ligado ao grupo. Éramos um grupo pequeno porque não havia muitas crianças de dez, onze anos interessadas neste tipo de atividade (nem minhas duas melhores amigas daquele tempo eu consegui levar), mas era um ambiente muito legal e é uma das melhores lembranças que eu tenho dos tempos de São Luís. Se for pensar hoje, acho que o professor Bosco, orientador vocacional, professor de Religião, um dos coordenadores do JUMA e praticamente uma unanimidade entre os alunos, foi o primeiro líder de verdade que eu conheci na vida. Com seu enorme carisma, ele nos levava para onde queria, e com entusiasmo. Na religião, nítida e cada vez mais profundamente, para a Igreja Católica; nas questões sociais, muito sutilmente, para um pensamento que hoje talvez fosse direcionado à esquerda, muito antes de entendermos este conceito. Mas pode ser que isso seja apenas um olhar da adulta de hoje sobre uma perspectiva do passado; eu era muito criança, não dá para afirmar.

Aos doze anos fui para Minas e o abalo foi inevitável. De uma escola católica, ortodoxa do piso ao teto, onde ainda se hasteava a bandeira e se cantava o Hino Nacional toda semana e a missa e o ensino religioso eram obrigatórios (e esta é uma narração, não uma crítica, ó mundo difícil!), fui transplantada para um colégio conduzido por um diretor pseudo liberal, onde a partir do colegial (hoje ensino médio) os alunos não eram obrigados a assistir às aulas, mesmo estando nas dependências do colégio, desde que não ultrapassassem o limite legal de 25℅ de faltas. Cada aluno tinha seu próprio controle de frequência e quanto à religião, cada um que seguisse a sua. Meus pais sempre tentaram transmitir seus valores aos filhos, mas nunca exigiram muito de nós no sentido religioso e a falta de doutrinadores para seguir, somada à inquietude da adolescência e ao deslumbramento com uma nova proposta de liberdade, fez com que se virasse o feitiço contra o feiticeiro. Foi inevitável que surgissem os questionamentos de ordem religiosa, e destes eu derivei para os de ordem social e os relacionados à autoridade, principalmente familiar. Desde criança gostava de ler, mas foi nessa época que a literatura entrou com força total na minha vida. Num tempo em que nem se sonhava com as facilidades da internet eu lia tudo o que pudesse sobre os mais variados assuntos, de romances açucarados a teorias esdrúxulas sobre extraterrestres e chatíssimas análises socioeconômicas sobre dominadores e dominados. O desejo adolescente de contestar era grande e a Igreja Católica era um dos alvos preferidos, principalmente depois de ter estudado sobre a Idade Média na escola. E não ajudou em nada ter um pai autoritário e pouco interessado em novos conceitos, sobretudo de liberdade. Através da literatura passeei pelo budismo, candomblé, rosa-cruz, li romances judeus e espíritas, voltei à nossa Bíblia católica e li também sobre o hinduísmo, porque era moda na época, os gurus e não-sei-quê-mais-lá. Tudo isso movida por uma curiosidade que só bem mais tarde eu conseguiria ver que nada mais era do que a procura por um entendimento maior sobre Deus, sobre quem poderia estar mais certo sobre Ele.

O tempo passou e os conflitos daquela fase difícil foram resolvidos ou empurrados para algum plano secundário, mas a busca que começou naquela época rendeu muitos anos, ainda. Olhando para trás agora, sei que não encontrei respostas. Encontrei, na verdade, apenas informações e o que eu chamo de curiosidades sobre o assunto, mas aprendi a respeitar a fé das pessoas e isso foi o fundamental dessa história. Com o tempo aprendi a entender a minha, também. Tirei meu entendimento pessoal sobre as religiões, sobretudo sobre a minha, e aprendi a conviver com isso. Ainda carrego em mim a velha culpa católica, e o peso daquela cruz, consigo senti-lo em muitos momentos. Mas, não sigo mais nenhum dogma, nem católico nem de outra religião qualquer. Em relação a isso, pelo menos, a culpa não me perturba tanto. Gosto de alguns aspectos da Bíblia, no entanto. O Eclesiastes é um dos livros mais cheio de verdades que eu conheço e o Evangelho de Mateus, também. Neste último tem uma passagem em que Jesus diz para não orarmos como os hipócritas, mas sim sozinhos, em comunhão direta com Deus, sem precisar mostrar nada a ninguém. A Bíblia de casa (nunca deixei de ter uma) fica permanentemente marcada nesta passagem e minhas orações são comigo mesma. Não julgo mais a fé de ninguém, mas tampouco me importo com questionamentos ou críticas acerca da minha. No poema Desiderata (já coloquei aqui uma vez) tem uma parte que recomenda que fiquemos em paz com Deus, não importando a maneira como O concebamos. É um ensinamento que eu acho precioso. Uma amiga muito católica me disse certa vez, quando passava por um momento difícil e eu falava das diferenças entre a minha maneira de ver Deus e a dela, que tudo o que eu faço, pareço fazer com amor, e era o que importava. Acho que isso contraria um pouco os princípios da religião que ela segue tão devotadamente, e de minha parte acho vaidoso e temerário concordar, mas foi gentil da parte dela dizer. Seja como for, eu vejo Deus, ou o que eu entendo por Deus, de várias formas no meu dia a dia e vivo em paz assim. O catolicismo está, e acho que sempre estará, muito arraigado em mim para uma ruptura definitiva. Ainda rezo o Pai Nosso todos os dias, e não por culpa ou obrigação, mas porque me transmite uma sensação de paz; vou à missa às vezes só pelo gosto de ouvir esta oração rezada em uníssono. A música Ave Maria de Minha Infância, do Pe. Zezinho, ainda me comove até às lágrimas e as Ave Marias das seis da tarde no rádio do carro fazem a mim um bem enorme, também.

E, embora chegando em Roma hoje sem nenhuma intenção de ver o Papa, acho o Papa Francisco – e aqui falo somente da figura do homem público, santidade e divergências de idéias à parte – um dos líderes mais carismáticos da atualidade. Líderes são líderes em universos de todos os tamanhos, afinal.
Reconheço a importância da Páscoa para a religião na qual fui educada e respeito toda a devoção do povo católico em relação a ela. Porém, se as minhas crenças pessoais não se alinham mais ao significado a ela atribuído, encontro algum respaldo na filosofia de Voltaire, que inferiu que se existe alguma ordem (e aqui eu completo: maravilhas, também) no universo é porque alguém ou algo criou esta ordem: “Se Deus não existisse seria preciso inventá-lo, porém a natureza proclama a sua existência”. Mas eu também, como ele, acredito no Deus que criou os homens, não no Deus que os homens (e suas religiões) criaram. E sigo com fé.

2 comentários em “Crônica de avião para a Páscoa

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