O velho relógio da escada e a persistência da memória: sobre as vicissitudes do tempo e o que nem ele é capaz de mudar.

Sábado, 4 de maio de 2019 (may the 4th be with you all)

A Persistência da Memória, de Salvador Dali.

Duas semanas atrás, num jantarzinho com amigos do colégio, em minha casa, o marido de uma dessas colegas falou para mim que se lembrava de ter frequentado muito a casa dos meus pais, na adolescência. Ele era amigo de amigos da minha irmã mais nova. Eu respondi que como ele foram muitos os que andaram por lá, e contei um pouco de como era lá em casa. No último final de semana, numa pequena reunião só com a família, para comemorar o aniversário da minha mãe e os 57 anos de casados dos meus pais eu me lembrei novamente de como era a nossa vida com eles.

A casa dos meus pais sempre foi cheia de gente, principalmente de crianças e adolescentes, desde quando eu consigo me lembrar. Quando meu irmão mais novo nasceu, o mais velho tinha doze anos e entre os dois nasceram cinco. Meus pais sempre fizeram questão de conhecer nossos amigos e com sete filhos, dá para imaginar a movimentação que isso gerava. Festas, aniversários, trabalhos escolares, semanas de prova, fins de semana, férias e feriados… tudo era motivo para a casa estar sempre cheia. E além dos nossos, ainda tinha os amigos deles, também.
Era uma casa barulhenta, alegre, acolhedora e cheia de vida. Nunca tivemos luxos (pelo menos não os convencionais), mas temos, na cozinha, uma grande mesa de madeira maciça que nos acompanha há cerca de quarenta anos. O coração da nossa casa sempre foi a cozinha e em volta daquela mesa nós reunimos muitas vezes a família e/ou os amigos para estudar, conversar, rir, chorar, desabafar, cozinhar, comer, beber, festejar, fofocar, brigar… às vezes fazendo tudo isso ao mesmo tempo. Amigos que tivemos em todas as épocas guardam de lá de casa a lembrança daquela mesa sempre posta, sempre com gente em volta dela em alguma hora do dia, da noite ou da madrugada, quando às vezes os amigos de uns encontravam-se com os de outros e a coisa rendia ainda mais. Minha mãe gostava de cozinhar e faz, entre outras comidas boas, um bolo de chocolate que virou lenda por onde nós passamos. Nós crescemos assim e, como nossos pais, nós todos tentamos criar uma atmosfera agregadora em torno das nossas próprias famílias, também. Nossos filhos também encheram nossas casas (e a nossa paciência, que ninguém é de ferro) com seus amigos, colegas, namorados etc. Foi, de certa maneira, para mim e para os meus irmãos, um revival da nossa própria vida.

Tem um poema do Longfellow que me lembra muito dessa nossa história. Não vou traduzir porque nenhuma tradução que eu fiz ou vi dele alcançou a poesia que ele expressa em sua língua original, o inglês. Mas vou tentar narrá-lo no sentido que ele fez para mim (embora deteste fazer isto também). É um poema que começa narrando a história de um velho relógio que, de seu lugar na escadaria de uma casa antiga, sussurra com tristeza sua cantiga das horas a todos que passam por perto daquela casa. O som que faz, seu tique taque, é um Forever – never / Never – forever, que parece dizer que nada é para sempre. Conta que sua voz durante o dia é baixa e leve, mas que na calada da noite esta voz assume um outro tom e ecoa claramente ao longo do corredor vazio, do teto, do piso, da casa inteira, enfim, como se dissesse às portas de cada um daqueles cômodos, que nada é para sempre. Diz que aquele relógio, como se fosse Deus, que a tudo vê, dali assistiu aos dias de tristeza, de alegrias, de mortes e de nascimentos, e que diante de todas as mudanças que o tempo realizou naquela casa, seu refrão permaneceu imutável, repetindo que nada é para sempre. Fala da hospitalidade e do aconchego daquele lar, de seus banquetes que a todos acolhiam, mas com o relógio advertindo sempre, como aqueles estraga-prazeres da vida, que nada é para sempre. Diz que aquela casa foi palco da alegria de crianças brincando e dos sonhos de jovens rapazes e moças. Lembra daquelas horas preciosas e da fortuna em amor e tempo que eles possuíam (Leminski deve ter bebido daqui), e que todas estas horas o velho relógio contabilizou, como um avarento que conta seu tesouro, dizendo que nada é para sempre. Lembra, ainda, que dali saiu uma noiva, em seu vestido branco para o casamento. E que também lá, numa sala silenciosa, em sua mortalha também branca, um morto foi velado. Relembra que no “silêncio que se seguiu à prece” , apenas a voz do relógio se ouviu, reiterando que nada é para sempre. No final o poema deixa a narrativa externa e passa à primeira pessoa, que diz que agora todos estão espalhados; uns casaram, alguns morreram… e quando ela se pergunta, não sem pontadas de dor, se todos eles ainda poderão se encontrar novamente, como nos tempos que há muito se foram, é o relógio quem responde, reafirmando que nada é para sempre. A narrativa externa volta e conclui que o para sempre só existe para além deste plano onde habitamos, em algum lugar onde toda despedida, dor e tudo o que importa, e também a morte e o tempo, desaparecerão. É o que diz, implacável e incansavelmente, o relógio da eternidade.

Na casa dos meus pais o relógio fica na cozinha e a cozinha ainda é onde bate o coração da nossa família. Nós nunca demos muita importância a ele, no entanto. Acho que ali, assim como o relógio do poema, aquela mesa de madeira maciça foi quem a quase tudo viu e ouviu. Hoje estamos todos espalhados, perto ou longe, cada um com suas próprias famílias, que também já começam a se dispersar. Aquela casa cheia de barulhos e de vida também virou uma casa silenciosa na maior parte do tempo e assim as nossas próprias casas estão ficando, também, e este silêncio dói pelo que revela. Somente aos sábados, quando todos os que estão por aqui ainda se reúnem para o almoço é que a casa e a mesa voltam a se encher dos barulhos do dia, com poucas crianças brincando atualmente, mas ainda com jovens risonhos e sonhadores ao redor. E com velhos e adultos ainda algo sonhadores, também. O bolo de chocolate é a sobremesa certa desse almoço e todos nós, filhos e netos, ainda levamos nossos amigos para lá eventualmente. Todos ainda pedimos à minha mãe para fazer este bolo para alguma festa de escola, faculdade ou trabalho. Sei que isso tudo um dia também vai se acabar. As reuniões da família inteira já estão cada vez mais raras, com as agendas e compromissos pessoais difíceis de conciliar, mas nós ainda mantemos, a despeito de tudo, uma estreita ligação. Como toda família, nós também tivemos e temos as nossas falhas, decepções, mágoas e dores, grandes e pequenas, superficiais e profundas mas, para mim, o que ficou e transparece sobre nós, tão nítido quanto a voz daquele relógio do poema e quase tão sólido quanto a madeira da nossa mesa, é o amor que nós tivemos ali. Àquela casa nós voltaremos sempre, mesmo quando ela não existir mais. E se hoje não temos mais aquelas horas douradas do dia, se o silêncio começa a nos envolver a todos e o tempo vai levando tudo de bom e de ruim que nos deu, a certeza e a lembrança desse amor é o que nós vamos levar conosco até chegar o dia daquele lugar para além do tempo e de toda dor.

Aquela casa antiga do poema é só uma das moradas do tempo, essa criação divina que foi atrelada à da vida e que o homem, na sua infinita e genial burrice, e com sua impressionante capacidade de criar angústias para si próprio, inventou um jeito de contabilizar. O velho relógio da escada é a testemunha/instrumento disso. O dia, durante o qual sua voz é baixa e leve, são aquelas infindáveis (assim as pensamos) horas douradas da nossa juventude, e a noite, aquele momento em que já podemos sentir a vida passar e silenciar ao nosso redor, e através deste silêncio escutar, com nitidez cada vez maior (pegando uma carona no Proust), os ecos das batidas do tempo, que durante o dia nunca chegamos a perceber ou insistimos em ignorar. E o Dali com isso? Nada de mais, só uma livre associação. Aquela tela dele me lembra muito daquele lugar onde tudo, inclusive o tempo, deixará de existir. Até lá, ainda lembrando o quadro, que persista a memória de tudo o que vivemos e tivemos de bom, é o que eu espero. E esta é só mais uma história das boas histórias que eu sei.

Deixo por fim, no original e para livre tradução e/ou interpretação, The Old Clock on the Stairs, escrito por Henry Wadsworth Longfellow em 1845. Um poema que, como eu disse para o meu marido uns anos atrás, quando ele o mostrou para mim, é para se lembrar no tempo do inverno. É uma das poesias mais bonitas que eu li na vida.

The Old Clock on the Stairs

Somewhat back from the village street
Stands the old-fashioned country-seat.
Across its antique portico
Tall poplar-trees their shadows throw;
And from its station in the hall
An ancient timepiece says to all,

—”Forever — never!
Never — forever!”

Half-way up the stairs it stands,
And points and beckons with its hands
From its case of massive oak,
Like a monk, who, under his cloak,
Crosses himself, and sighs, alas!
With sorrowful voice to all who pass,

“Forever — never!
Never — forever!”

By day its voice is low and light;
But in the silent dead of night,
Distinct as a passing footstep’s fall,
It echoes along the vacant hall,
Along the ceiling, along the floor,
And seems to say, at each chamber-door,

“Forever — never!
Never — forever!”

Through days of sorrow and of mirth,
Through days of death and days of birth,
Through every swift vicissitude
Of changeful time, unchanged it has stood,
And as if, like God, it all things saw,
It calmly repeats those words of awe,

—”Forever — never!
Never — forever!”

In that mansion used to be
Free-hearted Hospitality;
His great fires up the chimney roared;
The stranger feasted at his board;
But, like the skeleton at the feast,
That warning timepiece never ceased,

“Forever — never!
Never — forever!”

There groups of merry children played,
There youths and maidens dreaming strayed;
O precious hours! O golden prime,
And affluence of love and time!
Even as a miser counts his gold,
Those hours the ancient timepiece told,

“Forever — never!
Never — forever!”

From that chamber, clothed in white,
The bride came forth on her wedding night;
There, in that silent room below,
The dead lay in his shroud of snow;
And in the hush that followed the prayer,
Was heard the old clock on the stair,

“Forever — never!
Never — forever!”

All are scattered now and fled,
Some are married, some are dead;
And when I ask, with throbs of pain,
“Ah! when shall they all meet again?”
As in the days long since gone by,
The ancient timepiece makes reply,

“Forever — never!
Never — forever!”

Never here, forever there,
Where all parting, pain, and care,
And death, and time shall disappear, Forever there, but never here!
The horologe of Eternity
Sayeth this incessantly,

“Forever — never!
Never — forever!”

15 comentários em “O velho relógio da escada e a persistência da memória: sobre as vicissitudes do tempo e o que nem ele é capaz de mudar.

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  1. Este poema é a mais perfeita representação da passagem do tempo que vi até hoje. E é dolorosamente verdadeiro. E imediatamente ele me remete a outro poema, este de Quintana:

    “Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio da parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo”.

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  2. Belíssima crônica de nossa trajetória familiar. Eu, particularmente, saí de casa há 38 anos para cuidar da vida profissional e académica, mas sempre tornei a ela, inicialmente sozinho e, após, com minha família.
    Ali vivemos ótimos momentos, e também alguns difíceis.
    São recordações que permanecerão para sempre em nossas memórias existenciais.
    Que o núcleo dos 8 irmãos mantenha-se unido e continue cultivando e afinando isso junto aos filhos, alguns dos quais também já em debandada de nossas casas.
    Avalie publicar também no Facebook, ainda que de forma resumida ou adaptada, devido ao belo textão.
    Você é nossa escritora-mor.
    Bjs, Peteca.

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  3. Belíssima crônica de nossa trajetória familiar, Peteca. Eu, particularmente, deixei essa convivência diária há 38 anos, mas sempre retornei quando possível, inicialmente sozinho e, após, com minha família, que hora também se dispersa em busca de seus caminhos.
    Que os 8 irmãos cultivemos esses encontros por muito tempo, sempre que possível, pois nossa história é muito bonita e singular, a despeito de nossa pluralidade.
    É que nossos filhos também se mantenham unidos, na medida do possível e da trajetória de vida de cada um. Bjs

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  4. Belíssima crônica de nossa trajetória familiar, Peteca. Eu, particularmente, deixei essa convivência diária há 38 anos, mas sempre retornei quando possível, inicialmente sozinho e, após, com minha família, que ora também se dispersa em busca de seus caminhos.
    Que os 8 irmãos cultivemos esses encontros por muito tempo, sempre que possível, pois nossa história é muito bonita e singular, a despeito de nossa pluralidade.
    É que nossos filhos também se mantenham unidos, na medida do possível e da trajetória de vida de cada um. Bjs

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  5. Belíssima crônica de nossa trajetória familiar, Peteca. Eu, particularmente, deixei essa convivência diária há 38 anos, mas sempre retornei quando possível, inicialmente sozinho e, após, com minha família, que hora também se dispersa em busca de seus caminhos.
    Que os 8 irmãos cultivemos esses encontros por muito tempo, sempre que possível, pois nossa história é muito bonita e singular, a despeito de nossa pluralidade.
    É que nossos filhos também se mantenham unidos, na medida do possível e da trajetória de vida de cada um.
    Avalie publicar uma versão resumida ou adaptada no Facebook, devido ao belo textão.
    Você é nossa escritora-mor.
    Bjs

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