Sexta-feira, 19 de abril de 2019 (um feriadão em casa)
“A obra As Caçadas de Pedrinho só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Isto não quer dizer que o fascínio de ouvir e contar histórias devam [sic] ser esquecidos; deve, na verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que valorizem os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, dentre eles, o negro.” – Parecer 15/2010 do Conselho Nacional de Educação (CNE), p.2, sobre As Caçadas de Pedrinho.
“De escrever para marmanjos já estou enjoado. Bichos sem graça. Mas para crianças um livro é todo um mundo.”. – Monteiro Lobato
Eu disse aqui um dia desses que falaria do Monteiro Lobato, do Fernando Pessoa e do Gabriel García Márquez. A conexão entre eles seria o mundo – este mundo admirável, novo e… chato. Todas as vezes que se tira uma frase de seu contexto original, seja ele um livro, um filme, uma música, uma declaração, uma conversa, que seja, você a coloca sob risco de edições e interpretações, as mais variadas possíveis. Tem muito disso pelo mundo, e sobre isso, em homenagem ao dia de ontem, vou começar pelo Monteiro Lobato. 18 de abril, para quem não sabe, é o Dia Nacional do Livro Infantil, em homenagem ao dia do nascimento deste escritor.
A partir de primeiro de janeiro deste ano do Senhor de 2019 a obra de Monteiro Lobato entrou para o domínio público. Isto quer dizer que qualquer um poderá se utilizar dela para editar, ilustrar, publicar etc, sem ter que pagar direito autoral a ninguém por isto. Li por estes dias que vai sair daí uma enxurrada de obras baseadas, principalmente, na jóia comercial maior da coroa dessa obra, O Sítio do Picapau Amarelo. Eu amarelei só em saber dessa notícia!
De Monteiro Lobato só li o Sítio e Urupês. Não sou nem de longe uma especialista no autor mas, com muita humildade devo dizer que fui – e ainda sou – uma leitora compulsiva do Sítio. Foi a referência literária mais importante da minha infância e é uma das lembranças melhores da minha vida de leitora. Perdi a conta das vezes que li e algumas partes eu sei de cor até hoje. Li com meus filhos mais tarde e ainda volto a esses livros muitas vezes. Já faz algum tempo que esse autor virou polêmica e alvo de críticas pelo conteúdo considerado inapropriado de alguns de seus livros. Isto é justificado, principalmente, por termos de cunho racista em sua linguagem. Uns anos atrás, numa questão que foi parar no STF, quiseram até retirar um deles, As Caçadas de Pedrinho, do Programa Nacional Biblioteca da Escola, que distribui (ou distribuía, quem sabe como está hoje?) milhões de livros para as escolas públicas do país. A resposta do governo a esta solicitação foi a exigência de uma nota de ressalva, pelas editoras, sobre o uso de termos pejorativos, o que não foi suficiente. O Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) não aceitou a proposta e exigiu uma preparação e capacitação dos professores da rede pública para a utilização do livro nas escolas.
No auge deste imbróglio a polêmica ultrapassou a obra e foi parar no lado pessoal do autor. Veio a público uma carta dele a um amigo, na qual ele lamenta o Brasil não ter uma organização como a Ku Klux Klan: “Paiz de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan, é paiz perdido para altos destinos. André Siegfried resume numa phrase as duas attitudes. ‘Nós defendemos o front da raça branca – diz o Sul – e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brazil’. Um dia se fará justiça ao Klux Klan; tivéssemos ahi uma defeza desta ordem, que mantem o negro no seu lugar, e estariamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do gallego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destróe a capacidade constructiva”. A carta deve ter mais, mas este foi o trecho destacado. Em qualquer contexto que se olhe, no entanto, isto não pode deixar de parecer racismo. E a eugenia era um tema que lhe interessava muito, portanto, a despeito da justificativa de alguns dos seus biógrafos (um desabafo à maneira da época, de alguém extremamente impulsivo, por exemplo), fica difícil desfazer essa ideia.
Mas ainda tem mais. No conto do Jeca Tatu, do Urupês, Monteiro Lobato refere-se ao Jeca como preguiçoso irremediável, adepto e entusiasta da lei do menor esforço, generalizando a imagem da figura do caboclo pela visão de um rico proprietário de terras. Discriminação também inegável. Isto também é fato!
Ele também foi julgado e condenado por criticar e se recusar a fazer parte do Movimento Modernista no Brasil. E como estes, vários são os argumentos que misturam autor e obra, numa sucessão de mentiras, verdades e edições destas últimas.
Não vou defender o autor de suas supostas ou comprovadas distorções de valores. Já disse aqui uma vez que o que me interessa neles é o que eles passam em suas obras. Este é o único julgamento que me permito fazer. Então esta discussão não deveria ser sobre o autor mas, se sobre ele for preciso falar, que se deixe de descontextualizar, abra-se a visão e seja visto mais. Por que não chama a atenção dos críticos que estão sempre de plantão, o fato de Monteiro Lobato ter colocado uma mulher no comando e na administração de uma família e de uma propriedade no início do século XX? Por que tampouco se destaca o fato de a personagem mais importante do Sítio do Picapau, o alterego do autor, ter sido uma personagem feminina? Mais ainda, uma boneca, brinquedo que naquele tempo era exclusividade do universo infantil feminino. Mas minto, talvez: Pedrinho também tinha um boneco. Talvez o Visconde de Sabugosa tenha sido um dos precursores dos bonecos masculinos na nossa história – isto deveria ser alguma espécie de marco da igualdade de gênero. E por que não é alardeado aos quatro cantos, por exemplo, o prefácio que ele fez para o livro de Josefina Sarmento Barbosa, em 1921, onde diz que “A mulher não é inferior nem superior ao homem. é diferente. No dia em que compreendermos isso a fundo, muitos mal-entendidos desaparecerão da face da terra.” ? Talvez porque soe machista ao mundo atual, que não enxerga a simplicidade nas coisas, mas este prefácio, ele foi escrito para e aceito por uma mulher que hoje talvez fosse tida como empoderada. Eu tive a curiosidade de pesquisar sobre ela e descobri que foi uma daquelas mulheres que lutaram pelos direitos femininos em uma época em que ainda não se queimavam sutiãs. Entre outras coisas, ajudou muito na conquista do voto feminino.
No conto Negrinha, do seu universo literário adulto, Monteiro Lobato narra o sofrimento, tortura e abusos sexuais sofridos por uma filha de ex-escrava “dentro de uma casa de uma senhora virtuosa, branca. Aquilo é um libelo contra uma sociedade branca, racista e mais, com a conivência da igreja católica”, nas palavras de um de seus biógrafos, Vladimir Sacchetta. Foi escrito e publicado na época em que estas coisas infelizmente eram muito comuns, por um proeminente membro desta mesma sociedade. E não como uma apologia a isso, com toda certeza! Sobre o Jeca Tatu, consta que depois de se aprofundar nas questões de saúde pública, o autor entendeu a condição de saúde e a conjuntura social que levaram o Jeca a ser o que ele via, e na segunda edição de Urupês pediu desculpas a ele, daí saiu a frase “o Jeca não é assim, ele está assim”.
Não sou educadora e só eduquei, mesmo, meus filhos, portanto não tenho tarimba para entrar muito por aqui. Mas, eduquei meus filhos lendo para eles O Sítio do Picapau Amarelo! Não tiveram problemas em entender, como eu não tive para explicar o que precisava ser explicado a eles na idade em que li os livros. O argumento contra mim seria que, sendo branca, escolarizada e de classe média, não saiba nada da realidade do racismo, da pobreza braba e das misérias a ela associadas, e fique muito confortável em pensar desta maneira. Sob este ponto de vista talvez minha posição seja confortável, sem dúvida mas, se nunca vivi nada disso, posso dizer que já convivi com tudo isso bem de perto, de várias formas. Não estou colocando aqui o papel cor de rosa do Sonho de Valsa sobre a realidade do mundo, mas apenas defendendo uma obra que considero de grande importância para a cultura nacional. E para as crianças, ricas ou pobres. Talvez, e cada vez mais eu me convenço disso, independentemente de outros fatores, eu apenas tenha lido O Sítio quando criança e esta pode ser a prerrogativa mais válida nesta questão.
As crianças começam a tirar seu entendimento do mundo, seus valores, através das histórias que vivem, vêem e ouvem; elas não são discriminadoras por natureza, isto é trabalho do mundo adulto com elas. Existe uma frase batida e rebatida, do escritor e pensador G.K.Chesterton que diz assim: “Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada ensinam às crianças que dragões podem ser mortos”. Deve valer para as fábulas, também, e é nisso que eu vejo uma abordagem errada das histórias e diálogos do Sítio. Monteiro Lobato usou e abusou de termos racistas, é verdade. A personagem negra Tia Nastácia é achincalhada pela Emília muitas vezes. “Negra beiçuda” é um dos epítetos que a boneca dá a ela, sem falar da comparação com animais como urubu, macaca… Em suas Memórias, quando vai falar de Tia Nastácia a boneca destaca suas qualidades como serviçal e chega a falar que não consegue compreender “por que Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preta”. Mas mais na frente, no mesmo texto ela completa: “ciência e mais coisas dos livros, isso ela ignora completamente. Mas nas coisas práticas da vida é uma verdadeira sábia. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás, também são pretos. Isso me leva a crer que a tal cor preta só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá em cima não há diferenças de cor. Se houvesse, como haveria de ser preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas?”. Se isto não for uma declaração de igualdade e uma crítica sutil ao racismo, terei que rever minha capacidade de interpretar textos. E naquela fictícia e surreal conferência com os líderes europeus (aqui incluídos, pela licença “poética” do autor, Hitler e Mussolini) após a Segunda Guerra, para promover a paz entre os povos, não foi Tia Nastácia que foi convocada para ajudar a discutir o assunto, juntamente com D. Benta, por serem as “duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas (…)”? Tio Barnabé, aquele velho sábio, esperto, cheio de coisas para ensinar também é negro. E também é negro o Saci, com toda a sua inteligente filosofia. E todos estes personagens desfrutam do amor e do afeto das pessoas do Sítio, sem discriminação, apesar dos termos pejorativos. As crianças sabem disso! Elas entendem. E Monteiro Lobato sabia como passar isso a elas. Seu grande pecado parece ter sido contar histórias com a linguagem de um tempo em que tanto a sociedade quanto a consciência social eram outras. Trocando em miúdos, ele foi condenado por contar sobre o tempo em que viveu, na linguagem daquele tempo.
A nossa novilíngua tupiniquim usa e abusa da expressão consciência crítica, através da qual temos que tomar conhecimento do mundo ao nosso redor e descobrir e reformar o que precisa ser melhorado. Isto é papel tanto da educação escolar como da doméstica e deve ser trabalhado desde a infância. E se as crianças são bombardeadas com baboseiras de todos os tipos todos os dias, qual a razão para não receberem literatura de qualidade em narração, estilo, filosofia, imaginação etc? Já é tempo de deixarmos de nos ligar em descontextualizações e ver as coisas integralmente, eu acho. Abrir nosso campo de visão sem direcionar sempre para objetivos particulares ou pontuais. Tentar encontrar, se não um lado bom, pelo menos um lado útil nas coisas, ao invés de apontar em primeiro lugar sempre o lado mau. Monteiro Lobato demonstrou simpatia à eugenia e, bom, Winston Churchill o fez também, e o mundo hoje seria outro se não fosse por este último. E nenhum dos dois a colocou em prática, ao que eu saiba. Ninguém pode negar, diminuir ou desculpar o absurdo, para dizer o mínimo, que foi a escravidão, e o que trouxe de consequências para a população negra, assim como não se pode fazer isso com o Holocausto, o extermínio de índios ou qualquer outro crime em massa que a humanidade tenha cometido (e ainda cometa) contra si própria. E também não se pode negar nem acobertar o preconceito e o racismo que existem ainda hoje. Mas não será tempo de simplesmente deixar que as crianças voltem a aprender por elas mesmas como matar seus dragões? – E aqui, neste contexto, eu ainda me arrisco a dizer: Estes dragões não são as onças pintadas e nem os negros das histórias.
Por fim, digo mais uma vez, isto não deveria ser sobre um autor, e sim sobre suas histórias mas, no contexto dessas histórias – ou estórias, como se dizia antigamente – Monteiro Lobato foi um revolucionário da nossa literatura e um modernista nacionalista através de seus textos, mesmo sem o selo oficial do movimento. Rompeu com os engessados padrões da linguagem literária corrente no seu tempo e colocou a linguagem coloquial do negro, do caboclo, do povo, enfim, pela primeira vez em livros. E também suas lendas, crenças e ideias. O Sítio do Picapau Amarelo é, além do mais, uma apologia à infância e um reconhecimento das crianças como seres participativos no mundo – isto também foi inusitado. Deve ser lido na infância porque é nela que sua compreensão é melhor. Vai ser editado e reeditado de todo jeito agora, à mercê de um mundo politicamente correto e de visão paradoxalmente limitada. Temos que esperar para ver o que vai sair daí. Penso que só o fato de se editar, modificar, uma obra do passado já tira esta obra de seu contexto, e não me animo nem sou muito otimista em relação a isso. Mas, aprendi a manter a mente aberta e penso também que, se por um lado a obra sofrerá modificações, por outro talvez assim esta mesma obra e seu autor tenham um alcance maior justamente entre o público infantil. Atualmente este público é muito diferente e é muito mais difícil trazer sua atenção para os livros, ainda mais sobre as coisas simples, não tecnológicas da vida. As edições e “modernizações” poderão fazer esta aproximação, quem sabe… Só torço muito para que não se mate a essência daqueles personagens. A essência deles é, na verdade, a nossa própria, e isto mataria, também, a moral principal que eu vejo nesses livros. Porque, parafraseando o que foi dito ao Jeca Tatu, e como bem disse o Saci ao Pedrinho, nas Caçadas, nós, seres humanos adultos, não nascemos assim, nós ficamos assim. E quanto mais jovens percebermos isso, melhores adultos poderemos tentar ser depois, talvez, quem sabe… E aqui a gente fica nas reticências.
Temos que separar os criadores das criaturas! Isto sem entrar em qualquer julgamento sobre os criadores. A obra tem que ser eterna, e irretocável, no meu modo de ver as coisas. Cabe a nós desenvolver senso crítico e opinião própria, e ensinar isto a nossos filhos.
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O mote é este.
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