“Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”

Terça-feira, 11 de junho de 2019 (meu dia semanal da coragem para enfrentar a vida)

“— Mas isto quer dizer que eles vão morrer, não é?
— Eles têm elixir suficiente para deixar os negócios em ordem e então, é, eles vão morrer. Dumbledore sorriu ao ver a expressão de surpresa no rosto de Harry.
— Para alguém jovem como você tenho certeza de que isto parece incrível mas para Nicolau e Perenelle, na verdade, é como se fossem deitar depois de um dia muito, muito longo. Afinal, para a mente bem estruturada, a morte é apenas a grande aventura seguinte. Você sabe, a Pedra não foi uma coisa tão boa assim. Todo o dinheiro e a vida que a pessoa poderia querer! As duas coisas que a maioria dos seres humanos escolheriam em primeiro lugar. O problema é que os humanos têm o condão de escolher exatamente as coisas que são piores para eles.”
(Do Professor Dumbledore, explicando para o Harry Potter, depois que a Pedra Filosofal foi destruída, que tinha também convencido o alquimista Nicolau Flamel a não mais produzir o elixir da longa vida, e assim aceitar a morte. Em Harry Potter e a Pedra Filosofal, de J. K. Rowling)

“— Não imaginei que este negócio fosse tão grave a ponto de se pensar nos santos óleos — disse — logo eu que tenho a felicidade de não acreditar na vida do outro mundo.
– Não se trata disso — disse Révérend. -– O que está demonstrado é que o acerto dos assuntos da consciência cria no doente um estado de ânimo que facilita muito a tarefa do médico.
O general não prestou atenção à habilidade da resposta porque estremeceu à revelação deslumbrante de que a corrida louca entre seus males e seus sonhos chegava naquele instante à meta final. O resto eram as trevas.
— Carajos! — suspirou. — Como vou sair deste labirinto?
Examinou o aposento com a clarividência de quem chega ao fim, e pela primeira vez viu a verdade: a última cama emprestada, o toucador lastimável cujo turvo espelho de paciência não o tornaria a refletir, o jarro d’água de porcelana descascada, a toalha e o sabonete para outras mãos, a pressa sem coração do relógio octagonal desenfreado para o encontro inelutável de 17 de dezembro à uma hora e sete minutos de sua tarde final. Então cruzou os braços contra o peito e começou a ouvir as vozes radiosas dos escravos cantando a salve-rainha das seis nos trapiches, e avistou no céu pela janela o diamante de Vênus que ia embora para sempre, as neves eternas, a trepadeira cujas campânulas amarelas não veria florescer no sábado seguinte na casa fechada pelo luto, os últimos fulgores da vida que nunca mais, pelos séculos dos séculos, tornaria a se repetir.”
(De O General em seu Labirinto, de Gabriel García Marquez, quando um fictício Simón Bolívar, no seu leito de morte e depois de ter praticamente expulsado o bispo que veio lhe confessar e dar os santos óleos, ouve de seu médico e confidente que aquela era a hora do fim)

Ninguém gosta de falar sobre a morte mas à medida que o tempo vai nos ‘comendo pelas beiradas’, como dizemos por aqui, a consciência dela vai se tornando cada vez mais vívida para nós. Cada um lida com essa consciência da maneira que pode, e sobre isso meu filho contou para nós, no nosso grupo do ZAP, a conversa que presenciou entre os meus sogros e um velho amigo deles no último final de semana. Os três têm entre setenta e oitenta anos e a conversa foi sobre a morte e o que vem depois dela. Segundo ele, no meio da discussão sobre isso minha sogra disse que o homem era a maior criação de Deus e que ela não acreditava que Ele fosse criar sua perfeição “para se acabar com sessenta anos e pronto, não ter mais nada”. Meu sogro respondeu que ela “estava partindo de uma premissa de quem acredita em Deus”.O amigo deles fechou a discussão com “mas se não acreditar em Deus, vai acreditar em quê?”. Essa conversa acabou rendendo no nosso grupo. Meu filho disse que queria ter vinte anos para sempre, meu marido, que por ele teria parado nos quarenta, minha filha, que hoje se sente melhor do que aos vinte e eu, que estava no meio do expediente de trabalho e ainda não me queixo muito dos anos, sentenciei com um verso do Desejo, de Victor Hugo: “cada idade tem seu prazer e dor”. Meu marido disse que a morte, para ele, nunca foi uma opção e eu respondi, só para não perder o costume, com a frase do Dumbledore sobre a aventura da morte, que coloquei aí acima. Depois nós rimos e lembramos que o Dumbledore viveu uns 150 anos e o Flamel, 600, então assim ficava fácil falar: “Muitas aventuras”, minha filha concluiu.

Mas a verdade, mesmo, brincadeiras à parte, é que nós, das civilizações ocidentais, de uma maneira geral não convivemos bem com a ideia da morte. Nós, principalmente os latinos, ainda não chegamos ao mesmo grau de aceitação dos orientais em relação a isso. A crença cristã, que é a que ainda domina por aqui, prega a ressurreição, com a vida eterna da alma após a morte do corpo até o dia do Juízo Final, quando Jesus voltará e os mortos também voltarão e serão julgados, juntamente com os vivos, e os justos herdarão a Terra (ou algo assim). O espiritismo, que é a doutrina religiosa ocidental que mais se aproxima das crenças orientais no sentido de visão da morte, diz que nós reencarnaremos até cumprirmos nossa missão, a evolução completa do nosso espírito. Para aceitar qualquer uma delas, religiões ou doutrinas, é preciso ter fé, e ainda assim, quando a morte está perto de nós, esta fé às vezes nos falha e não aceitamos bem a ideia dela, a incerteza e o medo que ela nos traz.

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Painel de parede no Museu dos Descobrimentos, em Belmonte, Portugal: as brumas limitando e encobrindo parcialmente o encontro de dois mundos que se descobriam. (Não consegui me lembrar nem descobrir a autoria, mas a viagem aqui foi minha)

Para poder suportar a vida nós temos que aprender a aceitar a morte! Isto é freudiano, eu acho. Por outro lado, parece que acreditar em alguma coisa além da morte é um consolo que a maioria precisa ter para esperá-la com coragem. Ou, ter uma mente estruturada para isso. A minha mente não o é, confesso. Não para isso, pelo menos. O budismo diz que nós sofremos porque nos apegamos ao que é material e transitório. Eu não sou budista; sou latina e – maior que isso – nordestina até o último dos meus fios de cabelo (e eu tenho muitos) e ainda não consegui aceitar com desapego e racionalidade a ideia da morte. E enquanto puder evitar, prefiro não pensar no que existe para além dela. Deus é uma possibilidade na qual eu creio, mas a minha crença nele é diferente da maioria, não segue nenhum critério religioso oficial. Nem sei mesmo se nós somos a Sua obra prima, como quer a minha sogra… Acredito, no entanto, nos preceitos do amor que, segundo diz a Bíblia, foi Jesus quem passou para nós. Sobre a evolução, penso que fazer o bem deve ser uma forma de se evoluir neste mundo. Quer sensação mais gratificante do que a de fazer um bem, uma gentileza, que seja, para alguém? Esse bem-estar deve nos levar para algum lugar e às vezes acho que é para um lugar neste plano, mesmo. Fazer o mal deve seguir o caminho inverso, eu penso. Ou pelo menos deveria, mas as satisfações pessoais podem ser inacreditáveis e a maldade existe, de fato, e vive bem perto ou até dentro de nós. O Julgamento Final, acho que ele é feito por aqui, também. E as leis que o regem talvez sejam pessoais. Paraíso, Purgatório e Inferno, os destinos pós-morte nos quais fui educada para acreditar, são possibilidades que temos ao nosso redor durante toda a nossa vida e talvez sejam só a gradação da bondade e da maldade que cada um desenvolve. O arbítrio — ou o condão, como disse o Dumbledore — sobre isso é nosso e este arbítrio é uma das coisas que se diz que foi Deus quem nos deu. Alguém disse, também, que o inferno são os outros e esta é uma verdade indiscutível, mas às vezes o inferno somos nós mesmos. Paraísos, também, cada um pode tentar construir os seus. Dá muito mais trabalho do que construir infernos, mas vale muito mais a pena, também, apesar de não ser possível viver neles o tempo todo. Sobre o Purgatório, talvez a purificação maior seja a peleja para conseguir estar em paz consigo mesmo, eu penso. E estar em paz consigo mesmo é estar em paz com Deus, eu acho. Ou chegar ao Nirvana, sei lá… Talvez seja isto que passamos a vida tentando encontrar e é o que abre, na nossa mente, os portões dos nossos céus ou o alçapão para os nossos infernos.

Na nossa cultura não se costuma falar em morte com alguém que esteja para morrer mas eu fico imaginando, às vezes, como fica a cabeça de alguém que tem a consciência de que vai morrer em breve, como o general do Gabo. Alguém que sabe que tem uma doença incurável, por exemplo. A respeito disso eu tenho uma vivência bem próxima atualmente, do pai de um amigo/irmão que está convivendo com a certeza de um tumor inoperável no abdome. Quando se tem em torno de oitenta anos, os filhos criados, independentes e encaminhados, você pode ter a capacidade de se conformar mais com a própria morte. Pelo menos foi o que ele disse serenamente ao meu amigo, quando recebeu deste o diagnóstico do câncer. Este deve ser o pensamento de alguém que julga ter colocado os negócios em ordem e que tem, sem dúvida nenhuma, uma mente estruturada. Ele é um senhor esclarecido, pacato, calado e discreto e aceitou, também com serenidade, todos os primeiros procedimentos para tentar a cura. Não surtiram o efeito esperado e quando o tumor recidivou, disse que não queria tentar mais nada. Seriam só paliativos, de qualquer maneira. Mas vem aguentando com coragem e firmeza a dura provação que a doença tem imposto a ele. Meu amigo tem feito de tudo para aliviar isso e ultimamente anda fazendo longos passeios de carro com ele nos finais de semana. Diz que aproveita esses momentos para conversarem longamente, só os dois. E que no começo, quando perguntou ao pai por onde queria passear, ele, que viveu a vida toda na cidade, respondeu assim: “Me leve para ver algum lugar que eu nunca vi, que eu não conheço…”. Meu amigo disse, na última conversa que tivemos sobre isso, que aprendeu muito com seu pai durante toda a vida, mas que a lição que ele está dando agora, no fim, talvez seja a maior de todas.

E eu, do meu posto de observação do mundo, no fundo do meu quintal (e tentando ler nas entrelinhas), vou aprendendo também: frente à certeza da morte, parece que ainda é à aventura da vida que nós nos agarramos. Carpe Diem, diria o Horácio. Da morte, sabemos apenas que ela é a nossa única certeza e também a fronteira mais desconhecida que inexoravelmente teremos que atravessar. O que existe para além dela ninguém, comprovadamente, retornou de lá para contar. Aqui entram, sem dúvida, as crenças pessoais, mas entra novamente o Horácio: “Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti que fim os deuses darão”. Morrer pode ser alcançar o Céu, ou o Nirvana, ou, do outro lado, a danação eterna, sei lá… Mas também pode ser apenas não mais ver florescer a trepadeira no próximo sábado, ou não andar mais por um caminho novo… E daí? É viver o que nós temos de certeza para agora! Viver é que deve ser o grande barato, o grande perigo, a grande aventura que só a própria morte limita. Até que ela chegue, o limite é a vida. E viver é fazer histórias e ter histórias para contar. Cuidemos, pois, porque até enquanto eu conto esta história — licença de novo, Horácio — “terá fugido despeitada a hora: Colhe o dia, minimamente crédula no porvir.”

E já que estou extrapolando em chatice, para encerrar o assunto vou terminar esta crônica Lya Luft style de hoje com mais uma das melhores referências do meu Caderninho Azul®. É de um belíssimo conto de Virginia Woolf (mas poderia ser do pai do meu amigo, também) e me faz sempre lembrar que eu também rezo de manhã:

“A madrugada, mesmo quando há melancolia e faz frio, nunca deixa de me varar pelos membros, como se me atirasse flechas de um gelo penetrante e rútilo. Descerro as grossas cortinas e busco o primeiro brilho do céu, que mostra que a vida está a irromper. Rosto colado na vidraça, gosto de imaginar que me comprimo o quanto posso contra a muralha espessa do tempo, que sempre se alteia e se estira para permitir que outros espaços de vida venham de encontro a nós. Que a mim, pois, seja dado saborear o momento, antes que ele se propague pelo restante do mundo! Que eu saboreie o que existe de mais viçoso e mais novo! De minha janela olho para o cemitério da igreja, onde estão enterrados tantos dos meus ancestrais e em minha oração me compadeço desses pobres mortais que eternamente se debatem nas águas recorrentes de outrora; pois que é nos círculos e redemoinhos perpétuos de um lívido caudal que os vejo. E que assim possamos nós, nós que temos o presente por dádiva, dar-lhe uso e desfrutá-lo: isso é parte, confesso, da minha prece matinal.
(Virginia Woolf, em O Diário de Mistress Joan Martyn)

3 comentários em ““Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”

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  1. Temos medo do desconhecido. Mas uma das melhores coisas que temos na vida é justamente o mistério, a incerteza, o desconhecimento do que vem por aí. Sei que um dia encontraremos também, em algum lugar da estrada, nossa própria morte. Mas quem disse que a morte não é apenas um novo começo? A graça é não saber…

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