O tempo e o vírus

Terça-feira, 30 de junho de 2020 (de outra terça-feira)

“Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.”

Esta é uma frase do conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa. Apesar de conhecer de nome, o conto, só na semana passada foi que o li inteiro. É um conto tão enigmático quanto seu título, cimentado com aquela prosa estranha e difícil, característica de seu autor. Conta a história de um sujeito que mandou construir uma canoa, largou a família e tudo o mais e nessa canoa passou o resto da vida, subindo e descendo o rio, sem nunca explicar os motivos e nem mais falar uma palavra a ninguém. É uma boa leitura mas nem é dele que eu quero falar, na verdade. De lá, só retirei a frase legal.

No dia 18 de junho eu completei 90 dias em regime de quarentena. Não sei quantos mais ainda vamos ter até que a vida volte ao normal. Mesmo vivendo no meu por enquanto, de vez em quando eu não deixo de imaginar um pouco como será que olharemos para isso daqui a alguns anos. Ainda acho meio inacreditável o mundo como o estamos vendo agora. Ainda parece uma ficção apocalíptica dos anos 80, para mim. Fico pensando às vezes se no futuro – se tivermos algum – vamos pensar em 2020 como “o ano que não existiu’.  A tentação é grande mas acho que não, né? Quando o mundo, tecnicamente falando, parou, a Terra continuou girando e os relógios nunca deixaram de trabalhar a sua contabilidade initerrupta. E, falando nisso, tempo é o que não tem faltado para mim ultimamente – ou assim eu pensava até um dia desses, quando comecei a escrever esta crônica. Mas, de pensar morreu um burro, dizem por aí… Só que, dizem também, quando se perde um burro, joga-se o cabresto fora. Então vamos adiante!

De dentro da minha bolha de segurança e conforto – digo eu antes que o digam outros –, fiz de tudo um pouco, no tempo livre dessa quarentena: faxina de velharias e bregueços, organização da biblioteca, culinária aplicada à prática (da quarentena), jardinagem leve e pesada, imersão em música e poesia, exercícios físicos, fotografia de fundo de quintal, cursos online… Não parei de trabalhar por muito tempo, mas o trabalho agora é pouco, embora seja ainda mais pesado.Também inventei alguns brinquedos novos e vou inventando outros todos os dias. Repassando as receitas da gurulândia de ocasião, o balanço foi mais ou menos assim:

Não precisei “ressignificar” nenhum sentimento – já conheço todos os meus, os bons e os maus, e convivo razoavelmente bem com a maioria deles.

Não senti tédio em nenhum momento. E aliás, o único tédio que eu tenho na vida é sobre a humanidade, mas até esse me ajuda a passar o tempo e me rende às vezes alguns rabiscos da Gata Preta.

Não fiz nenhuma faxina interior porque já tenho o costume de jogar fora, todas as noites antes de dormir, tudo o que não tem relevância e o que me fez mal durante o dia.

Não aproveitei o tempo para aprender a valorizar as longas conversas com a família ou com os amigos de verdade porque este é um aprendizado de muito tempo atrás.

Não tive que relativizar valores materiais porque eu, que sempre tive mais do que o necessário para viver, também aprendi bem cedo a olhar para o dinheiro e deixar claro, como no Desejo, do Victor Hugo, quem é o dono de quem.

Não precisei pensar muito em quem eu levaria para passar uma quarentena porque também já sei disso há muito tempo, também.

Mas, tenho que dizer – e salvem-se ou danem-se os gurus – que aprendi, sim, algumas lições nesse período. Algumas bem práticas e outras nem tanto. A primeira das práticas foi que ninguém nunca vai valorizar a minha profissão e o meu trabalho mais do que eu mesma. E que às vezes por isso, dá vontade, sim, de uma mudança radical de ramo, na vida. Mas passa. Se por um lado nenhum trabalho paga, em dinheiro, o risco que eu corro nele, menos ainda pagará um bem que eu posso fazer através dele. Serviu para recuperar um pouquinho a fé. 

E, ainda sobre o bem, deu para perceber, sem precisar carregar a culpa do mundo nas costas nem achar que posso mudar tudo o que vejo de errado e injusto, que eu posso fazer muito mais do que o que eu faço. Não acredito em assistencialismo  nem em muitos outros ismos que vemos por aí, mas consegui vislumbrar alguns caminhos abertos para fazer a minha parte de beija-flor no grande incêndio da floresta. 

Sobre valores materiais, tive também a tranquila constatação de que, pela maneira como estruturei minha vida, e nesta etapa dela, não preciso de mais do que o que eu tenho agora. Luxos são, como já disse aqui algumas vezes, questões pessoais. Caminhar no Alpes Suíços é luxo, ver o por do sol na praia é luxo, andar pelos caminhos poeirentos da minha infância é luxo, uma manhã de domingo de junho no meu quintal é luxo… Bom é o que te faz feliz e ser feliz também é uma questão pessoal. E se for por isso, vivam os gurus!

E ser feliz, nesses tempos de Apocalipse Covid, é aceitar o novo normal – expressão-vomitório da vez – que está por vir. E começar a imaginar o futuro baseando-se na projeção dessa nova normalidade. Imaginar nunca foi problema para mim e ontem eu recebi, de um dos meus irmãos, um vídeo falando exatamente sobre isso. Nós já tínhamos conversado sobre isso um dia desses e quase tudo o que dizia ali bateu, em essência, com o nosso pensamento a respeito. Fala de tudo o que foi percebido, pela força do momento, sobre o que pode ser mudado no mundo para otimizar as nossas relações com custos e trabalho, principalmente. Mostra as descobertas óbvias que as pessoas e as empresas fizeram nesse período e faz projeções para a economia, a ciência, a vida em sociedade etc. A recomendação maior do vídeo é que, para enfrentar o que vem por aí, nós temos, primordialmente, que contratar uma internet boa. Era uma propaganda de uma internet supostamente boa, claro! E como essa internet boa entrará no contexto das favelas, mocambos e outros lugares habitados pelos de sorte incerta do mundo, lá não explica, mas isso é só um irônico parêntese, aqui. Olho para todas essas profecias, por assim dizer, com uma mistura de curiosidade e preocupação. A curiosidade é um defeito antigo e a preocupação passa por várias causas, inclusive pelo pensamento de que mundo nós vamos deixar para a rainha Elizabeth ll, no fim das contas. Mas olho também para tudo isso com um certo fascínio: um vírus que talvez mude a história atual do mundo (atentai que eu falo ‘do mundo’, não da humanidade, que esta é uma só desse o início dos tempos). Que colocou em pé de guerra, expondo-a em todas as suas veleidades, a comunidade científica mundial; subjugou, do mais poderoso ao mais medíocre dos governantes do mundo e formou, por todo o planeta e em questão de poucos meses, exércitos de leigos que sabem de tudo e hordas de gestores que não sabem de nada. Na sala de espera do novo normal, o mundo já perdeu para o vírus, seu precedente, perto de meio milhão de seus habitantes. E as pessoas, parece que agora mais do que nunca, destilam seu ódio e disputam a razão a ferro, fogo e muita violência verbal. Superfaturamento, subnotificação, ignorância, intransigência, arrogância ainda são atitudes da ordem atual, ao que me parece, também. Nada novo sob o sol no planeta Terra, ainda. E eu aqui, brincando meus brinquedos de quintal…

Nesse tempo de angústias, de pouca coisa para fazer e de #fiqueemcasa eu voltei mais uma vez ao Tempo e mais uma vez foi a lição dele que eu aprendi. Enquanto um vírus submete o mundo a funcionar aparentemente à meia-boca, a impressão que se tem é que o tempo também está congelado e não o enxergamos passar. Ou achamos que ele está passando devagar demais. Obrigados a parar por um motivo de força maior, acho que talvez devêssemos prestar maior atenção à relatividade dele. Enquanto uns param, outros tentam correr contra ele ( os pesquisadores da vacina  que o digam) e tudo ao redor dele é relativo. Mas ele passa para todos indiscriminadamente e é em torno dele, e de nenhuma outra grandeza (ou pequeneza) que o mundo gira. No fim das contas, na miséria ou dormindo em cima de um surrão de dinheiro, bons ou maus, trabalhando ou em casa, ninguém nunca vai ter tempo sobrando na vida. Somos todos igualmente vítimas desse relógio que, enquanto soma minutos e acrescenta horas ao tempo, vai também subtraindo, paradoxal e inexoravelmente, o nosso próprio tempo por aqui. E mesmo parado, qualquer relógio marcará a hora certa duas vezes por dia, como bem diz o paradoxo dos relógios.

Nesses quase cem dias de quarentena, tive muitas noites insones. Senti medo, sofri angústias, chorei muito mas, ainda assim, em algum momento consegui voltar a escutar o som da minha própria risada de novo. A lição maior do tempo é sempre a passagem dele, arrastando, neste passar, do pior ao melhor e vice-versa. Salientando meu próprio óbvio, aguardo para ver a nova normalidade surgir. Sobrevivo ainda, e vivo cada dia da melhor maneira possível. De discutir com os senhores da razão já desisti há muito. De ver corrigidas as injustiças do mundo, então, nem se fala.E esta desistência talvez seja a minha terceira margem do rio pessoal. O meu próprio “novo normal”, que de novo não tem mais nem os cabelos loiros da infância. Ter razão é bom, mas ser feliz é melhor. E assim eu vou seguindo com a minha canoa, rio acima ou rio abaixo, às vezes contando um pouco das histórias que eu sei.

6 comentários em “O tempo e o vírus

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