Nós que passamos apressados pelas ruas da cidade

Sexta-feira, 31 de julho de 2020 (fechando mais um ciclo da lua)

Onde houver gentileza, haverá sempre um gesto que surpreenda. Amor se esconde nas coisas pequenas. E a amizade, nas atitudes que se refletem maiores que a presença.”.               José Datrino, Profeta Gentileza               

Atendendo a uma convocação do serviço público eu agora trabalho em horário especial de pandemia. É o meu novo normal (arrepio seguido de náusea) de segunda-feira: horário incoveniente , bairro perigoso, ambiente de risco… mas, sem sequer pensar em pleitear uma vaga nalgum panteão de heróis, mantenho-me a postos. Acaba sendo uma boa hora para se pensar, no fim. Aí volta aqui a história do burro que morreu pensando e não-sei-o-que-mais-lá, mas, ainda assim eu continuo seguindo, empacando e dando com os meus próprios burros n’água. Às vezes em águas profundas, outras vezes flutuando no raso… Vamos pra frente, de qualquer forma! 

Entro no meu turno de trabalho às 18 h, o que quer dizer que, utilizando 10 dos meus 15 minutos de tolerância, consigo escutar a Ave Maria das seis na Teresina FM, no caminho. A do momento é a de Schubert e eu acho que ela combina muito com o pôr-do-sol cheio de vermelhos e laranjas que temos aqui nessa época do ano. É espetacular e uma verdadeira viagem para mim, que adoro um enquadramento do mundo a partir da janela do carro. Na volta, já tarde da noite, a viagem é um pouco mais tensa mas o rádio continua ali, para aliviar. No retorno desta semana, numa eclética e excelente seleção musical da FM Universitária, ouvi a música Gentileza, da Marisa Monte, e aí foi que eu viajei, mesmo. Essa música, para quem não conhece a história, foi feita para um cidadão carioca que na década de 1960, depois de ter tido algumas “visões”, largou sua empresa de transportes e a família, em Niterói, e foi viver nas ruas, pregando palavras de amor, conforto e gentileza para as pessoas, e assim permaneceu por muitos anos, perambulando entre o Rio de Janeiro e Niterói. Ficou conhecido como Profeta Gentileza. Ele escreveu suas ideias principais em 56 pilastras de um dos principais viadutos no Rio, que depois foi vandalizado, depois pintado de cinza e posteriormente, restaurado. Maluco ou não, deixou para nós uma historinha bonitinha.

Eu gosto de pisar onde pisaram alguns dos meus mestres. Talvez isto seja sequela de algum trauma adquirido na infância, e uma terapia talvez resolvesse, mas a única concessão que eu fiz à psicanálise até hoje foi ler Em Busca do Tempo Perdido, do Proust. E enquanto a terapia não vem eu vou cedendo ao ‘problema’. Uma vez, numa viagem de carro pela Dinamarca, fizemos um pit stop programado em Odense, porque eu queria conhecer a cidade e a casa onde nasceu Hans Christian Andersen (um dia eu ainda vou falar sobre essas minhas viagens nas viagens). O centro histórico da cidade, por onde só dá para circular a pé, estava todo em obras e o GPS ficou meio maluco lá. Demos várias voltas sem conseguir achar a casa-museu, até que paramos um rapaz que ia passando e pedimos informação. Ele vinha na direção contrária à da casa mas prontamente mudou seu caminho e disse que nos levaria até lá. Foi o trajeto inteiro – o que levou uns 10 minutos, mais ou menos – conversando alegremente conosco. Ele devia ter uns vinte e poucos anos e aparentava ser alguém muito de bem com a vida e com boa vontade de sobra. 

Nesta semana que passou, por coincidência, li uma matéria sobre a maneira como a Dinamarca prepara as crianças desde cedo para terem empatia com o mundo. Através de um programa aplicado nas escolas, desde cedo elas são estimuladas a identificar nelas próprias as emoções do momento e dessa maneira aprendem também a reconhecer as emoções das pessoas ao seu redor. Não conheço o programa a fundo nem sou educadora, mas fico pensando no tipo de mundo que nós temos hoje, onde essas coisas precisem ser ensinadas na escola. E não sou educadora mas entendo um pouco de doutrinas, e do pouco que eu sei, resolvi que não gosto delas, apesar de esta, em especial, não deixar de ser uma maneira boa de se trabalhar por um mundo melhor. Mas, no entanto, não tenho como evitar de me lembrar do Admirável Mundo Novo do Huxley, que mostra uma sociedade na qual as crianças, desde bebês, são ensinadas a não se emocionarem com coisas alegres, bonitas etc. Elas crescem num mundo funcionalmente perfeito e, se precisam de alegria ou de alguma felicidade extra, têm uma droga específica para isso à sua disposição, a SOMA. A Dinamarca é um país rico, admirável e o segundo colocado no ranking mundial da felicidade – Problemas de menos, conquistas de mais e empatia nas alturas. Não sei se eles têm alguma droga poderosa por lá mas acho que àquele rapaz que nos ajudou alegremente, além de boa vontade, sobram também motivos para tê-la, ao que parece.

Por aqui nós chegamos até a estranhar qualquer tipo de simpatia gratuita hoje em dia. O Nelson Rodrigues disse, acho que em uma daquelas suas agudas crônicas de costumes, que a bondade do brasileiro caminhava para a deterioração e que a cada 15 minutos tínhamos um aumento do desgaste da nossa delicadeza. Já se vão quarenta anos da sua morte e de lá para cá este recorde já deve ter sido superado muitas e muitas vezes, mas foi, no entanto, no coração da – talvez – mais brasileira das nossas cidades que eu tive um exemplo bom de gentileza. Numa caminhada de fim de tarde (ainda seguindo a trilha dos mestres), fazendo o trajeto Copacabana-Arpoador- Ipanema-Leblon, tive uma pequena síncope em pleno calçadão de Ipanema. Depois de prestar minha homenagem à estátua do Drummond, pular a do Dorival Caymmi, dar à mão à do Tom Jobim e ver o mar quebrar nas pedras do Arpoador (ok, Seu Caymmi, é bonito, é bonito…) senti “o sangue fugir”, como o povo diz por aqui. Meu marido não é exatamente um socorrista tranquilo quando se trata de um de nós e, vendo seu aperreio, um vendedor de picolé que fazia ponto ali perto ofereceu ajuda. Quando dei por mim eu estava lá, estendida num banco do calçadão, da cor do chão daquela praia. Foi o meu mico de aniversário daquele ano. Depois de algum tempo o vendedor de picolé ainda veio novamente perguntar se podia ajudar em alguma coisa e se eu já tinha melhorado. Ele foi prestativo e muito delicado e eu não ia ofendê-lo agradecendo a ajuda com dinheiro, mas antes de irmos embora, pedi ao meu marido que comprasse dois picolés para nós. Enquanto vendia os picolés ele fez meu diagnóstico: “foi a glicose do sangue dela que baixou”. E como medicação, deu ao meu marido uns sachês de sal, para se eu me sentisse mal de novo. Todas as vezes que me lembro dessa história, penso que deveria andar sempre era com um sachê de mel, para não me esquecer de pessoas como ele.

Sempre que eu penso em gentileza, imagino um ato assim: espontâneo, autêntico e despretensioso que dirigimos a alguém. Isso quer dizer, para quem tem dificuldade em entender – e são muitos neste nível – alguma coisa não planejada, isenta de fingimento e sem intenção nenhuma de qualquer tipo de retorno. Gentileza é algo que sai, como diz uma amiga minha, da bainha da alma. Uma maneira de ser que pode até ser trabalhada (talvez seja este o mote da Dina), mas é inata, eu penso. É aquela ajuda que veio sem ser pedida, aquele cumprimento com um sorriso num dia bom ou num ruim, a palavra boa naquela hora difícil, aquele abraço de conforto num momento preciso, uma delicadeza feita pelo simples prazer de se fazer… tudo isso que não passa na Globo mas que a gente ainda vê por aí às vezes. Do pobre ou do rico, a um amigo ou a um desconhecido qualquer. E que, apesar de não ter endereço, tem nome, já batizou até um “profeta” e virou musiquinha bonita. Aquele meu médico/vendedor de picolé era preto, seguramente pobre, transitando pela sexagésima década de vida, aparentemente, e eu acho que prefiro não pensar no tipo de empatia que foi ensinada a ele nas escolas do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, por onde passou. Se é que passou. Era um sujeito brasileiro genuíno, com todos os seus possíveis predicados.

O mundo é uma escola / A vida é um circo / Amor: Palavra que liberta / Já dizia o profeta, é o que diz a Marisa Monte na musiquinha. E é, meu amigo, – digo eu corrompendo de leve, desta vez um poeta – de tudo que se perdeu de outras coisas boas nesse mundo, só me resta uma certeza: É preciso lembrar da gentileza, é preciso inventar de novo o amor. 

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