E tem dias em que é bom escrever sobre leveza.

Sexta-feira, 30 de setembro de 2021 (hoje o dia amanheceu com chuva)

“Antes de sair de casa

aprendi a ladainha

das vilas que vou passar

na minha longa descida.

Sei que há muitas vilas grandes,

cidades que elas são ditas;

sei que há simples arruados,

sei que há vilas pequeninas,

todas formando um rosário

cujas contas fossem vilas,

todas formando um rosário

de que a estrada fosse a linha.

Devo rezar tal rosário

até o mar onde termina,

saltando de conta em conta,

passando de vila em vila.”

– João Cabral de Melo Neto, trecho “Morte e Vida Severina”. (1967)

“Parece que quanto mais lugares eu vejo e experimento, mais eu percebo como o mundo é grande. Quanto mais eu conheço, mais eu percebo o quão pouco eu sei das coisas, quantos lugares eu ainda tenho para visitar, quanto ainda há para aprender. Talvez isso seja esclarecimento o suficiente; saber que não há um lugar de descanso final da mente, nenhuma clareza presunçosa. Talvez a sabedoria seja perceber o quão pequeno e sem sabedoria eu sou e o quão longe eu ainda tenho que ir.”

— frase do chef Anthony Bourdain, retirada de um artigo que li sobre viagens algum tempo atrás.

João Cabral de Melo Neto e Anthony Bourdain muito provavelmente nunca souberam um do outro durante suas passagens por este plano terreno. Também não poderiam ser pessoas mais diferentes, em todos os aspectos que se possa imaginar. Mas, a essência do pensamento humano é universal e parece ter sempre muitos atalhos para chegar a um mesmo lugar. Hoje nós vamos viajar e viajar é mais.

Viajar é uma das coisas que eu mais gosto de fazer na vida. Viajar simplesmente pelo gosto de fazer um programa diferente de vez em quando. E nem precisa ser uma viagem longa (nunca gostei de ficar fora por muito tempo). Não precisa ser glamourosa, não tem que ser para longe e muito menos, cara … só precisa ser viagem. Mar, praia, montanha, cidade grande, mato, um caminho velho ou um novo… todo viajar é bom para mim. Sair da mesmice, da rotina estressante, das masmorras da mente ou simplesmente da zona de conforto é o verdadeiro sentido da coisa. Em tempos normais eu costumava viajar muito, mas durante a pandemia viajei muito pouco, sempre temendo o Apocalipse-Covid. Agora, com a maior parte da população vacinada (é, eu sou dessas…), já começo a liberar o espírito viajeiro novamente.

Viajar por lazer é um daqueles prazeres pessoais, intransferíveis e, muitas vezes, indizíveis que eu tenho, mas toda vez que penso em escrever sobre viagens, parece que minha mão pesa. Existem lugares e experiências de viagens que, por mais que eu me esforce para descrever, não consigo chegar nem aos pés do que são na realidade. Eu posso ver, fotografar, detalhar tudo, ao contar, mas ainda assim sempre acho que não consigo transmitir o ‘orgasmo visual’ que tive ao viver aquilo. Mas um bom narrador desperta, pelo menos, a imaginação das pessoas. Wagner, que viveu para a música, disse uma vez que se tivesse que usar uma palavra para substituir música, esta palavra seria Veneza, cidade que ele amava com paixão. Eu não preciso de uma palavra para substituir música, mas entendo o sentimento do Wagão, aí. Quando estou em algum lugar em que consigo entrar em perfeita sintonia com o que me cerca, talvez seja música de qualidade que eu esteja ouvindo, realmente.

No último final de semana, com minha filha de férias e minha pequena família completa e na nossa casa por uns dias, resolvemos fazer uma rápida viagem à praia. Meu estado, o Piauí, tem o menor litoral do Brasil. São apenas 66 quilômetros que comportam, a despeito disso, praias com banhos de mar deliciosos, vilarejos pitorescos e o único delta em mar aberto das Américas. O Delta do rio Parnaíba, que dividimos com o vizinho Maranhão, é formado por um conjunto de ilhas, rios e igarapés, com mangues, dunas e lagoas de água doce entremeadas. Este conjunto inteiro forma uma belíssima paisagem cheia de recortes, cuja beleza maior só conseguimos dimensionar através de fotos aéreas. Mesmo assim, os passeios de barco são bem legais. Já fui algumas vezes mas minha filha nunca tinha ido. Aproveitamos para ver, então, uma das atrações do Delta que eu não conhecia: a revoada dos guarás em volta de uma pequena ilha, ao pôr do sol.

 Os guarás, para quem não conhece, são aves de uma coloração vermelha vibrante, bem comuns nas regiões litorâneas em que existem manguezais. Nesta pequena ilha do nosso Delta, eles fazem um espetáculo à parte. Por volta de cinco horas da tarde, faça chuva ou faça sol, estas aves começam a chegar à ilha em pequenos e grandes grupos. Algumas poucas vêm solitárias. Vão chegando e pousando nas árvores da ilha, mudando aos poucos, de verde para vermelho, a cor da copa destas árvores. Só o vôo desses bichos, passando por cima das nossas cabeças naquela luz dourada de fim de tarde, já valeria a viagem – são realmente lindos! Mas, como nas grandes super produções, o melhor fica para o final. Perto da hora do sol sumir eles levantam voo de seus poleiros nas árvores, quase todos ao mesmo tempo, e fazem sobrevoos na ilha durante algum tempo. São apenas poucos minutos neste balé aéreo, mas o show que proporcionam planta uma memória visual eterna em quem assiste àquilo. O movimento harmonioso daquele balé formado por centenas de aves é parte de uma coreografia que só pode ter sido pensada por alguém mais alto do que nós, eu acho. Rolou uma lagrimazinha aqui e ali, e entre o burburinho dos pássaros, do vento e das pessoas nos barcos ao redor da ilha, enquanto eu tentava, sem muito sucesso, capturar com minha câmera algo da beleza daquele momento, na minha cabeça tocava música. E era música boa, mesmo eu não gostando de Wagner.

Houve um tempo na história da humanidade em que se escrevia com penas de aves. Quando vejo fotografias de textos escritos assim, tenho sempre a impressão de que as palavras parecem “esvoaçar” no papel. Uma impressão de leveza, mesmo, como se o ato de escrever superasse o peso da mão que o realiza. Ainda me considero uma ignorante na história da humanidade. Sei que tenho ainda muita vila para conhecer e reconheço, humildemente, minha enorme pequenez. A estrada é longa mas dá para ir vendo, vivendo e aprendendo alguma coisa aqui e ali. Tem lições que se repetem. Nesta viagem, carreguei comigo minha pequena família e uma penca de sobrinhos. Encontrei, também, um dos meus irmãos. Estávamos todos jovens, alegres e despreocupados. Estávamos todos leves e não há leveza maior do que a de saber que estamos entre os que amamos e que nos amam também (família tem dessas coisas). Estávamos em Veneza, eu acho. E tocava Wagner e tinha guarás revoando por lá…

Houve um tempo em que se escrevia com penas de aves, mas a história da humanidade hoje pode ser escrita até com um dedo deslizando sobre uma tela de cristal líquido, como escrevo agora, neste preciso momento. Mas, para terminar esta crônica de hoje com chave de ouro, eu queria era poder escrevê-la com tinta azul, sob o bico de uma linda pena de guará. Só tenho, no entanto, a pena, que recolhemos na água depois da festa deles no céu. Compartilho, então, como consolo, um pequeno vídeo feito por minha filha. Vejam com atenção, pode ser Veneza! E aumentem o volume porque, por trás do rugido do vento, pode estar tocando Wagner…

E aqui a viagem é minha.

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