Aquele em que a gente sobrevive ainda – mais um episódio de aniversário

Domingo, 31 de outubro de 2021 (dia das bruxas, mês de tentar fazer o relógio derreter)

Outubro é o mês do meu aniversário. Costumava ser um mês meio traumático para mim, mas ultimamente tenho pensado que existem dificuldades bem maiores do que completar anos. Sobreviver a eles é uma dessas. E uma, que – já dizia um Poeta – “como dói”. Mas mesmo sem os traumas antigos, tirei férias neste mês, como faço todos os anos. Eu não gosto de festas e as férias de outubro são a minha comemoração particular de aniversário. É o meu desconto e o meu bônus na barganha com o tempo, por assim dizer. Ele avança um ano no ponteiro do meu relógio e eu ganho o prazer de estar em algum lugar que tenha muito a ver comigo, meus bons ‘programas de índio’ etc.

 E viajei. Não fui de trem mas viajei.

Quase nunca viajo por muitos dias. Não gosto de ficar fora de casa por muito tempo mas desta vez, emendando um curso relacionado ao trabalho com alguns dias de férias, acabei me demorando mais. Com a pandemia os grandes congressos presenciais aos quais eu costumava ir foram suspensos, eu não tenho muita paciência para palestras on-line e então resolvi fazer um curso.  “A vida sem compromissos me solicita imensamente”, disse um Drummond algo avançado nos anos, numa carta a um amigo que pedia sua colaboração numa publicação. Adoro esta frase! E me lembrei dela durante o curso, também. Mas, trabalhando numa área que depende muito de atualizações constantes, aperfeiçoamentos e novos conhecimentos, enfrentei o intenso curso com coragem, por conta de uma crise de hérnia de disco, e toda a boa vontade que consegui reunir. E havia a expectativa das férias depois de tudo.

Geralmente nessas férias eu viajo só com meu marido mas, no ano passado e neste, viajamos com amigos. Talvez a pandemia tenha deixado esta ‘solidão de amigos’ em nós, quem sabe? E então nós viajamos com amigos. Eu sempre digo que só deve pensar neste tipo de viagem quem tiver aquele tipo de amigos com quem tem afinidade suficiente para fazer certas programações juntos e intimidade bastante para recusar outras tantas. Se não for assim, melhor manter os encontros em outro contexto. Por sorte eu tenho estas duas coisas com os meus amigos eleitos. 

A história dessa viagem começou, na verdade, dois anos atrás, antes da pandemia. De um grupo de seis, quatro de nós estávamos com passagens compradas para a Toscana quando estourou a pandemia. Numa brincadeira interna, nosso grupo de ZAP muda de nome a cada nova circunstância importante, e de Projeto Toscana, mudou nessa época para Projeto Sobreviver. Todos queríamos sobreviver mais do que viajar e as viagens foram deixadas de lado nesse meio tempo. E apesar de nos falarmos sempre, acabamos não nos encontrando tanto como era de costume. As pessoas parecem agora estar desesperadas para recuperar o ‘tempo perdido’ na pandemia, e depois de muito bater cabeça atrás de um lugar legal, sossegado e sem calor no meio dessa bagunça, resolvemos subir a Serra do Mar para Teresópolis. O convite foi feito e desta vez, aceito por todos, e a viagem acabou sendo uma das melhores que fizemos juntos. Choveu todos os dias, mas a chuva não nos impediu de fazer trilhas na mata. A temperatura era de 15°C mas não impediu nosso picnic às margens de um rio pedregoso e cristalino de montanha, nem o mergulho dos corajosos em suas águas geladas. A cidade não tem chiquérrimos restaurantes estrelados, mas comemos bem todos os dias. E não ficamos em nenhum hotel boutique de 4 ou 5 estrelas mas ganhamos, em compensação, o aconchego de uma charmosa pousada familiar, com um dos melhores cafés da manhã que já provei. Em boa parte do tempo não estávamos no meio da civilização mas, entre os sons do vento, da chuva, dos pássaros e das cachoeiras, nós escutamos muito o nosso próprio riso. E o som do riso – alguém disse por aí – é o som mais civilizado do universo*.

Era nosso costume, neste pequeno grupo de amigos, fazer uma comemoração simbólica dos nossos aniversários, mas durante a pandemia não comemoramos nenhum. No sitcom Friends, os episódios são nomeados de maneira peculiar no claquete. Cada título está relacionado ao assunto principal do episódio e começa com “aquele em que… + o assunto”. Numa brincadeira que corre o risco de tentar os fados, arrumei uma boleira descolada em Teresópolis que topou fazer um bolo de aniversário para nós todos com o motivo de Friends. No claquete do episódio, o título era “aquele em que a gente sobreviveu”. E sobrevivemos e comemoramos. Ou vice versa.

Nessa curta viagem de alguns dias, eu e meu marido fomos a São Paulo e estivemos com nossa filha, sobrinhas queridas e um primo que é, além de primo, um amigo. Passamos alguns dias em Teresópolis com amigos inquestionáveis, também. Por um mau tempo no Rio, perdemos nossa conexão para casa e pernoitamos em Brasília, onde não vi a beleza da florada dos flamboyants na luz do dia mas ainda pude ver a lua cheia sobre o Plano Piloto. Passamos a noite com meu irmão mais novo, que nos ofereceu uma calorosa recepção com tudo o que nós gostamos, mesmo de última hora. Amanhecemos o dia em Fortaleza, onde outro velho amigo nos buscou no aeroporto para um café da manhã com direito a uma visita ao seu ateliê de pintura. E voamos de volta para casa. 

Às vezes nós criamos ilhas, às vezes, criamos bolhas. Criamos até bolhas dentro de ilhas, ou talvez ilhas dentro de bolhas, sei lá… Muitas vezes uma e outra são lugares, mas nem sempre. Algumas vezes elas são só ambientes emocionalmente seguros, com o tipo de segurança que nós só temos quando nos sabemos entre os que nos querem bem. A família e as amizades sinceras (sempre achei esta expressão redundante) são duas dessas ilhas, eu acho. Talvez até as únicas delas, neste nosso mundo difícil. Poder contar com alguém nas horas mais difíceis, ter alguém para contar algo importante ou rir do meme do momento, ou somente comentar a última desgraça da política nacional do dia, mesmo… Conversar com quem sabe exatamente do que você está falando e do que você está rindo, mesmo naquele balãozinho que é invisível aos outros… Não tem preço para isto, eu acho.

Em um ano e oito meses da pandemia da covid-19 nós já perdemos muito. Perdas humanas, materiais, políticas e até espirituais – teve gente que acabou perdendo, além de tudo, a fé. Mas – digo mais uma vez aqui – bem ou mal, sobrevivemos ainda. Sobreviver, segundo os dicionários, e como verbo transitivo indireto, quer dizer “permanecer vivo depois de (algo); continuar a viver ou a existir; resistir ao efeito de; continuar a existir depois de (algo).”. Qualquer pessoa que vive sabe disso, mesmo que não tenha dicionário, mas não custa nada lembrar. Por incrível que pareça, ainda existem muitos que não conseguem ver do que escaparam. E deixam passar o motivo para festejar. Existem também os milhões que não têm nenhuma ilha ou bolha, ou por contingências adversas ou por vontade própria, mesmo. Estes usam sobreviver como verbo intransitivo – simplesmente sobrevivem – e é uma pena, realmente. Eu sou parte daquela porção da humanidade que teve a sorte de crescer no meio destes pequenos redutos de segurança. E com isso não quero dizer que sou melhor do que ninguém mas apenas que a vida é também uma loteria – fecha parênteses. De dentro desses redutos, continuo sem gostar de festas mas, ao mesmo tempo, acredito que ainda tenho muito como e por que festejar. Pensando justamente nisso, percebi que errei no tempo verbal quando ditei a brincadeira no bolo. Sobreviver é, na verdade, um verbo de tempo contínuo; um projeto perene, que se renova a cada dia, com ou sem pandemia, salientando o óbvio mais uma vez. E a ideia do bolo já não é mais original mas, se algum dia resolver repetí-la, no claquete virá escrito “aquele em que a gente ainda sobrevive”. E assim eu termino outubro mais uma vez.

E vamos seguindo e sobrevivendo, sem nunca perder a fé.

*A pessoa que disse isso sobre o riso deve ter se referido ao riso solto, puro, espontâneo, cristalino e de humor ou de alegria, eu penso. Existem outras modalidades mais obscuras de riso, como o riso sardônico, ou de escárnio, de deboche, de sadismo… Estes talvez nem sejam risos, na verdade. A mim, pelo menos, soam mais como o falso “riso” das hienas e suas prerrogativas. Ou talvez eu tenha assistido a O Rei Leão vezes demais, sei lá…

4 comentários em “Aquele em que a gente sobrevive ainda – mais um episódio de aniversário

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