O mundo segundo uma carta de George Orwell – 1944 era o ano

Terça-feira, 2 de novembro de 2021 (dia dos que já não estão mais por aqui)

A chuva me acordou às quatro da madrugada. Hoje é feriado, o dia esteve nublado até o fim e a noite desta terça-feira está com toda a cara de domingo. Tudo isso me deu vontade de escrever e o que puxou esse gatilho talvez tenha sido um pesadelo que tive no cochilo da tarde. Neste sonho recorrente, que tenho desde a infância, eu acordo mas não consigo abrir os olhos. A sensação é opressiva e angustiante. A minha mente associativa e inquieta viaja por caminhos que eu não consigo controlar, e por alguma razão, depois disso veio à minha memória uma carta de George Orwell que li um tempo atrás. 

Eu gosto de ler cartas de todos os tipos. No que diz respeito às cartas pessoais da gente comum, o pensamento e/ou o sentimento, exposto em papéis muitas vezes destinados só a isso (saudosos ‘blocos de cartas’), a colagem dos selos, a postagem, a logística da entrega, a espera pelo carteiro… tudo isso forma, na parte imaginativa da minha mesma mente inquieta, um ritual antigo que eu gosto de ver como um filme. As cartas contaram as histórias de boa parte da humanidade durante muito tempo e, dentro da literatura, o gênero epistolar é um que sempre me despertou a curiosidade. E ler as cartas de grandes personalidades do mundo – literário ou não – sempre foi, para mim, uma maneira de ajudar a entender a personalidade e o pensamento delas na mais pessoal e muitas vezes, espontânea, de suas formas de comunicação. 

Falar sobre livros é uma das minhas ambições para este blog e um dia eu espero sistematizar isto de alguma forma. Enquanto isso não vem, é só um aqui e outro ali, de vez em quando. Já citei 1984 por aqui algumas vezes. Disse também, na ocasião, que é um livro do qual não gostaria de falar. Acho que nunca me recuperei totalmente da leitura dele, mesmo passado tanto tempo. Em contrapartida, distopias não têm faltado para nós nos últimos sei lá quantos anos desde que George Orwell escreveu este livro, o que acaba mantendo a obra no presente. A percepção aguda que ele teve do provável destino político da humanidade, como tal, já foi destrinchada por muito mais gente do que talvez tenha sonhado sua amarga teoria. Eu não sou alguém capaz de contribuir com nenhuma análise técnica e, mesmo que fosse, continuo sem vontade de o fazer, também. Mas, estou entre os humildes que acham que ninguém explica melhor uma obra do que aquele que a realizou. Sobre isso – e para minha grande satisfação – alguns anos atrás foi divulgada uma carta deste autor, na qual ele explicava suas ideias, respondendo a alguém que lhe perguntava se ele acreditava mesmo que os regimes totalitários estavam em ascensão no mundo. A carta foi escrita em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, e nesta época 1984 ainda não havia sido publicado, era ainda apenas uma tese. O romance só foi escrito três anos depois disso e publicado apenas em 1949, pouco antes da morte do autor.

Não falar de política é outra das minhas cantadas e decantadas intenções neste blog, portanto ninguém entenda esta crônica como se fosse sobre isso. Pode parecer, mas garanto que não é! No entanto, George Orwell é um nome importante da literatura mundial e esta fama deve-se principalmente ao cunho político de sua brilhante e impactante obra. No senso comum ele é tido como um livre pensador e um símbolo do pensamento não-doutrinário e até anti-doutrinário. Como em tudo que se apreende do senso comum, também isto não é totalmente verdade. Mas, se ele passeou com desenvoltura pela esquerda de sua época, também era com desenvoltura que a criticava, porque conhecia a fundo seus excessos. Foi um defensor das liberdades individuais e dos direitos humanos e de trabalhadores, e defendeu alguns tipos estranhos de revoluções, também. Para mim ele parece tão ambíguo quanto complexo e genial, mas esta é apenas uma impressão leiga. É um autor cujo engajamento parece ser hoje reivindicado por diferentes alas políticas do mundo mas isto, na verdade, pouco me interessa aqui, preciso dizer. Sua Revolução dos Bichos (Animal Farm, no original) foi uma das chaves que ajudou a abrir algumas das minhas prisões em uma época determinada da minha vida. E 1984 pode ter sido o mais angustiante dos livros que li até hoje. Ponto. Portanto, voltando ao que eu dizia antes de descambar para isso, só queria mesmo falar desta carta dele, especificamente. 

É uma carta de estilo elegante, escrita dentro do modelo convencional das cartas, com data, destinatário, texto, saudação e assinatura. Entre os tipos de carta (eu pesquisei sobre elas), para mim parece um exemplo perfeito de epístola do tipo argumentativa, na qual o autor procura convencer o leitor, e para isso usa a estrutura básica de tese, argumentação e conclusão. Sobre convencimento, cada um que a ler vai decidir por si, como deve ter feito o tal do Noel Willmett, a quem a carta foi endereçada. Para mim, entretanto – e digo isto porque este espaço é meu –, ficou a estranha e assombrosa impressão de que a carta poderia ter sido escrita há sete dias, ao invés de setenta e sete anos atrás. Tive uma vontade estúpida de abrir bem os olhos (como no meu pesadelo) e é que eu nem estava dormindo… Revolveu alguns dos meus conceitos básicos e eu acabei me lembrando, também, muito despretensiosamente, de algumas das minhas simplórias reflexões de fundo de quintal e das poucas historinhas que eu sei do mundo… E esta é só mais uma delas, para encher uma terça fastiosa, com cara de domingo.

Segue a carta, na tradução de Carlos Alberto Bárbaro:

Para Noel Willmett

18 de maio de 1944

10a Mortimer Crescent NW 6

Caro Sr. Willmett,

Muito obrigado pela sua carta. O senhor pergunta se o totalitarismo, culto ao caudilho etc. estão em ascensão de fato, ressaltando que essas coisas, aparentemente, não registram crescimento aqui na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Insisto que acredito, ou temo, que quando se observa o mundo em sua totalidade, essas coisas estão aumentando. Claro, não restam dúvidas de que Hitler em breve será passado, mas somente às custas do fortalecimento de (a) Stálin, (b) dos milionários anglo-americanos e (c) de todo tipo de fuhrerzinho à la de Gaulle. Para onde quer que se olhe, todos os movimentos nacionalistas, mesmo os que surgiram como forma de resistência ao domínio alemão, parecem assumir formas não-democráticas, organizando-se em torno a algum tipo de fuhrer sobre-humano (Hitler, Stálin, Salazar, Franco, Gandhi, De Valera e vários outros modelos) e adotando a teoria dos fins que justificam os meios. Por toda parte, o mundo parece convergir para economias centralizadas, que podem até “funcionar” no sentido econômico do termo, mas que não são democraticamente organizadas, possuindo o pendor a estabelecer um sistema de castas. Acrescente-se a isto o horror do nacionalismo exacerbado e uma tendência à descrença na existência das verdades objetivas, já que todos os fatos têm que se adequar às palavras e profecias de algum fuhrer infalível. Na verdade, em certo sentido, a história já deixou de existir, não havendo mais uma história contemporânea que possa ser universalmente aceita, e as ciências exatas também estarão ameaçadas tão logo não se precise mais do exército para manter a ordem. Hitler pode dizer que os judeus começaram a guerra, e se ele sobreviver, isso passará a ser a história oficial. Mas ele não pode dizer que dois mais dois são cinco, porque para os objetivos, digamos, da balística é preciso que essa soma continue sendo quatro. Mas se o tipo de mundo que eu temo vier a se tornar realidade, um mundo de dois ou três grandes super Estados incapazes de conquistar um ao outro, dois mais dois será cinco se o fuhrer assim o desejar. E é para aí, até onde posso enxergar, que estamos nos movendo de fato, embora, claro, esse processo seja reversível.

No que respeita à comparativa imunidade da Inglaterra e dos Estados Unidos, digam o que disserem os pacifistas etc., ainda não trilhamos o caminho do totalitarismo, o que é um bom sinal. Eu acredito profundamente, o que expliquei em O leão e o unicórnio, no povo inglês e em sua capacidade de centralizar sua economia sem destruir a liberdade no processo. Mas é preciso recordar que a Inglaterra e os Estados Unidos não foram de fato postos à prova, nenhum deles sofreu uma derrota ou perda severa, e que há alguns maus sintomas que podem desequilibrar os bons. Comecemos com a falta de preocupação generalizada com a decadência da democracia. O senhor se dá conta, por exemplo, que na Inglaterra de hoje, ninguém com menos de 26 anos vota e que, pelo que se pode constatar, a grande maioria dos que estão nessa faixa etária não dá a mínima para isso? Acrescente-se que os intelectuais são mais propensos a soluções totalitárias que o vulgo. Os intelectuais ingleses, é verdade, se opuseram majoritariamente a Hitler, mas somente às expensas de aceitar Stálin. A maioria deles está perfeitamente pronta para os procedimentos ditatoriais — polícia secreta, falsificação sistemática da história etc. –, desde que a percepção deles indique que isso esteja “do nosso” lado. Na verdade, a afirmação de que não temos um movimento fascista na Inglaterra significa mais que os jovens, no momento, buscam seu fuhrer em outro lugar. Não é possível assegurar que isso não vá mudar, nem que a gente comum não vá daqui a dez anos pensar como os intelectuais ingleses pensam agora. Eu espero que não, eu chego a acreditar que não vão, mas se for assim, não será sem conflito. Simplesmente afirmar que tudo vai bem, sem identificar alguns sintomas sinistros, apenas ajuda a fazer do totalitarismo uma possibilidade mais próxima.

O senhor também me pergunta se, uma vez que julgo que o mundo está rumando em direção ao fascismo, por que então apoio a guerra. Trata-se de uma escolha entre dois males — creio que toda guerra o é. Eu conheço o imperialismo britânico o suficiente para não o apreciar, mas eu o apoiaria contra os imperialismos nazista e japonês, como o mal menor. Do mesmo modo, eu apoiaria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas contra a Alemanha, por julgar que a URSS não pode, a um só tempo, fugir do seu passado e manter o suficiente dos ideais originais da Revolução Russa, o que faz dela um fenômeno mais esperançoso que o da Alemanha Nazista. Eu acredito, e é isso o que penso desde que a guerra eclodiu, por volta de 1936, que nossa causa é a melhor, mas que temos que continuar a fazer com que ela evolua, e isso implica um constante exercício crítico.

Sinceramente, seu,

Geo. Orwell

4 comentários em “O mundo segundo uma carta de George Orwell – 1944 era o ano

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  1. O nacionalismo exacerbado sempre está na raiz de todos os males! Quero complementar este ótimo texto com uma frase de Umberto Eco: “Alguém disse que o patriotismo é o último refúgio do covarde: aqueles que não tem princípios morais normalmente enrolam-se numa bandeira, e esses bastardos falam sempre na pureza da raça”.

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