Sobre olhares, guerras e paradoxos andantes

Quarta-feira, 30 de março de 2022 (para não perder o costume)

“Cada dia, ao ler os jornais, assisto a uma aula de história.

Os jornais ensinam-me pelo que dizem e pelo que silenciam.

A história é um paradoxo andante. A contradição move-lhe as pernas. Talvez por isso os seus silêncios digam mais que as suas palavras e muitas vezes as suas palavras revelam, mentindo, a verdade.”

Foi com este comentário que Eduardo Galeano iniciou uma resenha prévia sobre seu livro, Espejos (Espelhos, para nós), alguns anos atrás. O livro, segundo ele mesmo, é algo assim como uma história universal, na qual ele narra ‘alguns episódios da aventura humana no mundo, do ponto de vista dos que não apareceram na foto‘.

Eu consegui perdoar Eduardo Galeano e ultimamente tenho lido muita coisa dele. Sobre o perdão, uma explicação: Nos meus tempos de revoltas e utopias da adolescência, ele figurou como um ídolo, e As Veias Abertas da América Latina me tomaram muito do tempo dela, sobretudo pela chatice e complexidade. Foi com muita força de vontade e coragem que consegui terminar o livro e me vangloriar comigo mesma por isto em algum momento daquela fase besta da vida. Era um tempo em que aprender sobre dominados e dominantes parecia imprescindível. O tempo passou, a roda girou, muita água de chuva voltou pro mar ou escorreu pelo esgoto e o próprio autor afirmou, em relação ao livro e mais de 40 anos depois, que não tinha preparo à época para realizar o que se propôs a fazer. Esta declaração ele deu em 2014 e coincidiu com uma época em que eu já tinha frustrado todas as minhas expectativas em matéria de política; a fala dele ajudou a selar o túmulo delas. Mas eu admiro e aplaudo todos os que conseguem ser críticos de suas próprias convicções. Eles são raros, em qualquer que seja o seu lado na história do mundo, e eu hoje considero Eduardo Galeano uma dessas raridades. É preciso muita coragem para alguém como ele renegar sua obra mais importante, reconhecida e uma referência na comunidade acadêmica mundial na área. Nesta entrevista ele disse que não conseguiria ler As Veias Abertas de novo:   – “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é chatíssima.”  E completou, brincando: “– Meu físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro”.  Ao tempo em que encerrou seu livro mais famoso na prateleira do passado, também falou, num tom muito ponderado, sobre as experiências da esquerda no mundo, o que deu certo e o que não deu, o que não deu certo justamente por estar certo e ter sido castigado por isso (sic) e o que não deu por estar, mesmo, muitíssimo errado. 

Eu me lembrei disso tudo no início deste mês quando o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, agradeceu às nações que aprovaram, por uma maioria nunca antes vista na ONU, a resolução que aumentava a pressão contra a Rússia, no início da invasão: “Vocês escolheram o lado certo da história”, assim ele terminou a declaração. Março, então, começou com mais uma guerra. Antes que o último samba reprimido do carnaval brasileiro deste ano terminasse de tocar, a Ucrânia já se encontrava sob ataque da Rússia.

 Daí eu fiquei pensando comigo mesma na ousadia de ideias que alguém como Zelensky precisa ter para atrelar a si próprio ao lado certo de qualquer história de guerra. E numa guerra que tem, de um lado, um genuíno ditador de esquerda, com todas as prerrogativas que convém ao cargo e do outro, um comandante (eu falei picareta?) ultradireitista eleito quase com base numa piada, literalmente falando. A partir daí eu não consegui evitar de puxar pelos meus alfarrábios. Fui puxando uma série de conflitos armados, campanhas militares, guerras ou seja lá como quiserem chamar essa grande estupidez potencial e efetivamente letal a que os povos foram submetidos desde que o homem é homem e o mundo é mundo. Por pura comodidade (e preguiça), puxei pelos que me lembrei a partir do desmantelo do mundo após as grandes guerras mundiais do século XX, com os conflitos que surgiram a partir e como consequência delas. Afeganistão 1 e 2, Vietnã, Camboja, Síria, Líbano, Moçambique, Cuba…Em todo o longo contexto oficial da Guerra Fria –  e muito depois dela, também–, foram vários os conflitos armados que nunca deixaram a palavra guerra cair em desuso. Antes que a questão religiosa muçulmana entrasse na pauta bélica atual, o motivo por trás de todas as outras guerras foi sempre o mesmo: ou o capitalismo ocidental tentando barrar a “ameaça socialista” ou o socialismo do leste europeu tentando cruzar fronteiras e engrossar suas próprias fileiras. Em nenhum destes conflitos consegui ver claramente o ‘lado certo’ da história. Em muitos deles houve total falta de atenção às recomendações do conselho de segurança da ONU. Em todos eles, pude enxergar facilmente – como enxergo hoje – a contradição e a mentira por trás da razão. Quem quiser pode até contar quantos países cada potência do mundo invadiu, aberta ou sub-repticiamente, nos últimos 80 anos da nossa história. E foi daí que eu dei de chegar no Galeano: “Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós”. E quem vai poder dizer que não, não é?

Vendo o povo falar de polarização como se fosse um fenômeno novo eu me divirto um bocado hoje em dia. Aulas de história de menos, talvez. Ou, Jornal Nacional de mais, sabe-se lá… Do fundo do meu quintal fico só vendo e ouvindo, das mais simplórias às mais tarimbadas análises dessa guerra. E vendo como todo mundo agora é expert em geopolítica. O povo fala mal do Putim com uma intimidade que chega a ser hilária, narrando seus últimos atos e até prevendo os próximos. O Zelensky vai de herói a vilão dependendo do que passa no noticiário ou é publicado na internet. E dependendo de quem publica, também.  Não deveria ser divertido, mas acaba sendo. Para alguém que acompanhava os capítulos da Guerra Fria pelo Jornal Nacional, nos anos 70/80, assistir à invasão da Ucrânia pela Rússia no último mês, trouxe de volta a fugaz sensação de ver um filme daquela época. Adolescente naquele tempo, eu vivia um medo mantido pelos patrocinadores da TV e nunca me esqueci do silêncio geral na saída do cinema, depois de ver The Day After. Eu não sabia que o pior daquilo tudo já havia passado. E da aula memorável (créditos à d. Nair) sobre a Crise dos Mísseis, ficou gravado sobretudo o final, com a URSS comprando açúcar de cana para remediar a economia de Cuba, mesmo produzindo o seu próprio, de beterraba. Eu me lembro disso porque gosto muito de beterraba e até então não sabia que se fazia açúcar a partir dela. Fecha parênteses.

Hoje eu não assisto mais ao Jornal Nacional e quanto às ameças de ataque nuclear, não as temo muito. Por mais que eu acredite na estupidez humana (bombas de neutrons não foi Deus quem fez), quero sempre pensar que até para esta existe algum limite. Nesta ou em qualquer outra guerra, sempre haverá um vencedor proclamado, ainda que por si próprio. Se do lado certo ou do lado errado, vai depender de onde estaremos olhando. No fim de tudo – e infelizmente – a preposição não é mais sobre eles mas sob eles. Sob – e isto quer mesmo dizer debaixo de – todas as certezas dos homens que mandam e fazem as guerras no mundo estará sempre o incerto destino de quem deixa para trás o que já nem têm mais: casa, trabalho, família, dinheiro, saúde… São estes os que já marcham a marcha dos derrotados antes mesmo que a vitória de algum lado seja decidida. Debaixo destes estarão ainda os milhões que nem vida têm mais. 

E eu, que não assisto mais ao Jornal Nacional, ando lendo muito Eduardo Galeano. Ao contrário do tom enfadonho e complexo daquele primeiro contato, descobri recentemente a fluidez, a leveza e o bom humor irônico de sua prosa. Tanto na prosa como na poesia ele manteve muito do viés social, por assim dizer mas, o que no começo era radical, hoje é crítico. O olhar que era essencialmente político, tornou-se, antes de qualquer outra coisa, humano. No seu Livro dos Abraços, uma das minicrônicas conta a história de um pai que leva o filho para ver o mar pela primeira vez. Lá chegando, diante da imensidão deslumbrante do mar, o menino vira-se para o pai e diz, gaguejando: “– Me ajuda a olhar”. E é por isso que eu hoje perdôo e até sou grata a ele por aquela primeira leitura. A prosa de esquerda tradicional também já deu, para mim. Mas, ter um bom olhar (leia-se, aqui, discernimento) sobre dominantes e dominados continua a me parecer imprescindível, ainda que não me desperte mais nenhuma paixão. Entender um pouquinho por que meios (ou veias, sei lá) a história vai escoando a persistência da humanidade nesse planetinha de nada me dá uma pequena, ainda que falsa, sensação de segurança. E assim vou seguindo a correnteza, entre os silêncios falantes e as verdades mentirosas que fazem da nossa história o paradoxo andante do Galeano, sem me atrelar ao lado certo nem ao errado delas. Aos que são vermes e pensam que são reis, deixo aqui só o meu mais inútil protesto. 

E esta pequena história entrou por uma porta e saiu pela outra. E quem quiser, que conte outra

Apenas um pequeno P.S: No início da semana passada atendi, no trabalho, uma senhorinha idosa da qual me despedi com um “Até mais ver”. Retribuindo a saudação com um sorrisinho meio nervoso, a velhinha falou: “Até, minha filha. Se essa guerra deixar, né? Lá onde eu moro o povo tá todo apavorado, com medo dela”. E eu fiquei o resto do dia rindo no balãozinho, imaginando os estrategistas do Putin mirando um de seus mísseis hipersônicos em Lago da Pedra, no Maranhão.

2 comentários em “Sobre olhares, guerras e paradoxos andantes

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  1. Ótima reflexão! Já estava sentindo falta da Gata Preta! Não existem vencedores ou vencidos em uma guerra! Existem os que sofrem mais ou menos. Toda guerra é uma estupidez! Quanto a ideologias, hoje acho que a posição correta para uma pessoa de bem se postar é algo no meio entre a direita e a esquerda, pendendo mais para a esquerda…

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