Sábado, 30 de abril de 2022 (e lá se foi mais um ano sem Belchior)
“Naquele tempo não havia antigamente”. – Mia Couto, O Último Vôo do Flamingo.

Nos últimos tempos eu tenho convivido com a sensação de ‘fim de era’ em tudo. Para onde eu olho parece existir um traço de despedida. Tenho visto morrer boa parte dos amigos dos meus pais e dos meus sogros. Meus filhos estão formados e trabalhando e, assim como seus amigos que cresceram pela minha casa, estão todos envolvidos em seus próprios projetos profissionais e pessoais, que não requerem nenhuma intervenção de minha parte. Também alguns dos meus ídolos da juventude estão encerrando as carreiras e o próprio fato de eu falar ídolos da juventude já atesta o fato de que isto não me pertence mais. A sensação é estranha e dói um pouco, pelo que traz à consciência.
Falar de morte é encarar a face pior do tempo que vai nos ‘comendo pelas beiradas’. Eu não gosto e prefiro pular esta parte por enquanto. Sobre filhos e ninhos, já falei muito por aqui, também; já deu! E já que eu tenho que manter meu compromisso de pelo menos uma crônica por mês (era mais fácil quando eu tinha insônia), vou pegar a carona de alguns dos ídolos vivos, mesmo.
Foi nessa levada de fim de era que eu assisti a parte de um dos shows da turnê de despedida do Elton John, Farewell Yellow Brick Road. A turnê, que começou em 2018, foi interrompida em 2020, devido à pandemia da covid-19, e em 2021, por problemas de saúde do cantor (ele só tem um quadril), foi retomada neste ano e deve seguir até 2023, quando terminará em definitivo. O show que eu vi foi o de Nova York, no Madison Square Garden. Não consegui assistir tudo porque era apenas uma filmagem de alguém da plateia e a qualidade era péssima, mas vi algumas partes marcantes. Interagindo muito com o público, numa das falas ele diz que aquele seria seu último show ali, naquela que considerava sua arena preferida no mundo; o lugar onde mais gostou de se apresentar durante toda a sua carreira. Segue falando que quando encerrar a turnê, estará com 76 anos e vai se dedicar à sua família. Dirigindo-se mais uma vez à plateia, ele conclui dizendo que depois que parar, outros artistas irão se apresentar ali e as pessoas curtirão esses outros, também. Sinal da passagem do tempo, ele quis dizer. Ao final do show, depois de sair do palco, ele volta e canta mais duas músicas: a primeira, Your Song, seu primeiro estouro, a música que o catapultou ao sucesso. E em seguida, como não poderia deixar de ser, cantou Goodbye Yellow Brick Road, enquanto um telão ia mostrando fotos de sua vida e de sua carreira. Depois de um performática ascenção sobre o palco, numa plataforma, ele fez sua última reverência ao Madison Square Garden e finalmente “entrou” na capa clássica do disco e foi caminhando pela Yellow Brick Road, como na capa do famoso disco, até sumir de vista. Foi emocionante de se ver e eu chorei um pouquinho, não tenho vergonha de dizer… E foi, acima de qualquer coisa, uma despedida digna do astro que ele é.
Também encerrou a carreira, por estes dias, a icônica banda Genesis, com a turnê The Last Domino. Eu não sei se chamaria o último show deles, em Londres, de um show especialmente bonito. Para mim foi dureza ver Phill Collins, debilitado, muito magro e longe de sua bateria (que ele cedeu ao filho), conduzir a banda a partir de uma cadeira e dali dizer adeus ao seu público depois de 50 anos de estrada. Golpe baixo para os amantes do rock progressivo dos anos 70, para os adolescentes que dançaram música lenta nas festinhas do cenário pop da música e do cinema dos anos 80 e até para as crianças que assistiram aos filmes Disney dos anos 90 – em verdade vos digo que me sinto um pouco de todos estes. Phill Collins anunciou, no fim da apresentação, que aquele era o último show dele e da banda, e brincou um pouco com isso. Falou que encerraram a carreira artística e a partir dali todos eles teriam que arrumar empregos de verdade. Agradeceu ao público que esteve sempre com ele e anunciou alguns dos convidados ali presentes. Na plateia estavam sentados Peter Gabriel, o primeiro frontman do Genesis, e Richard McPhail, empresário da banda na década de 1970 e amigo pessoal de Phill até hoje. Em entrevista para uma publicação de rock, depois do evento, Nic Collins, filho de Phill Collins, disse que após o show todos eles foram jantar e aquilo acabou como uma grande confraternização. Sobre Peter Gabriel, relata que ele disse estar feliz por ter comparecido ao ato final de algo do qual ele também fez parte. Nic termina dizendo que aquela foi uma ótima maneira de terminar tudo e que foi ótimo ver todos juntos e ouvir as pessoas compartilhando memórias.
Do lado de cá do mundo, na nossa terra de auriverde pendão subvertido por outras causas, chamou minha atenção, não um outro fim de era, mas uma comemoração que talvez valha por isto, pelo tempo que guarda em si: O disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, completou 50 anos. Aquele foi um álbum icônico, que popularizou e tornou conhecido o brilhante grupo de músicos mineiros, e vários eventos alusivos pipocaram pela internet e em várias publicações físicas também. Dentre esses, o que acompanhei inteiro foi a série de reportagens do jornal O Estado de Minas, com entrevistas com os músicos envolvidos. Foi legal ver a história da turma que acabou virando uma instituição na música popular brasileira lembrada por seus membros ainda vivos. As entrevistas de Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes e Márcio Borges foram as mais emocionantes. Todos eles estão pra lá de ‘acabados’ fisicamente, mas dá para perceber o ‘viço’ que surge quando contam a história do disco.
Márcio Borges é o irmão mais velho de Lô e foi amigo inseparável e primeiro parceiro musical de Milton Nascimento. Ele já tinha escrito a letra da linda Clube da Esquina, que fez parte do disco que Milton lançou em 1970, e foi também o letrista da música Clube da Esquina n. 2. A história da número 1 é bonita e foi muito bem contada em seu livro Os Sonhos Não Envelhecem. Aqui um pequeno resumo para preencher meu parêntese de estimação, pescado de um post antigo para minha página no Facebook: Lô Borges tinha dezesseis anos quando os primeiros acordes dessa música começaram a se repetir em seu violão durante dias. Milton Nascimento, já ganhador de festivais, tinha vinte e seis, era um amigo-irmão-parceiro musical de Márcio Borges, vinte e três , outro dos irmãos da enorme e musical família Borges, de BH, e estava passando em visita pela casa que tinha como sua. Lô pediu para mostrar a melodia, Milton ficou apaixonado pela música e os dois trabalharam nela, na varanda da casa. Márcio chegou, ouviu e entrou para a cozinha pedindo lápis e papel para sua mãe. Ia colocar letra “naquilo”. De uma vez só a letra simplesmente fluiu: os meninos, Lô e os Borges mais novos, além de outros (Beto Guedes entre estes), reunidos, à noite, na esquina da rua, os sonhos e a solidão da adolescência e a passagem para a vida adulta, a Serra do Curral, ao fundo… A luz faltou, d. Maricota trouxe uma vela que segurou acima da cabeça do filho, para iluminar os últimos versos. Foi a primeira pessoa a ler a letra da música que cunhou para sempre o eclético e talentoso grupo de músicos mineiros, e uma de suas mais lindas composições. Estava escrita e acabada Clube da Esquina! Para a numero 2, que Milton e Lô já tinham decidido que seria só instrumental porque, segundo eles, “a música já se expressava por si mesma“, Márcio conta que recebeu uma ‘ordem’ de Nana Caymmi para escrever com urgência uma letra que os dois autores considerassem irrecusável. “Na primeira, eu tinha falado de uma rua suburbana, dos meninos da esquina. Na segunda, queria falar da maturidade, dos moços se transformando em homens, e os homens partindo para outras esquinas, embarcando na realização de seus sonhos”, conta Márcio. Mais uma vez ele emplacou seu gol e Clube da Esquina n.2 tornou-se este hino de esperança que atravessou 50 anos cantado por pelo menos três gerações, de lá para cá.
Através destas e de outras histórias é que eu vou vendo, muito mais do que sentindo, a passagem do tempo. É daí que tem vindo a sensação de fim de era, eu penso. Na verdade eu até sinto, pela deterioração da visão, pelas artrites, sacroilites e poliesculhambites do meu corpo, também, mas a minha mente não atribuía isso tudo à idade até bem pouco tempo atrás – que coisa! Hoje até assinar o ponto do trabalho no último dia do mês me lembra que mais um já se foi. Encerrar fases sempre foi difícil para mim, mas eu já estou me acostumando mais com isso.
Vendo o flashback da vida de Elton John e ele sumindo na mesma estrada (“nem lembra se olhou pra trás ao primeiro passo“) onde começou, e Phill Collins, no apagar das luzes da sua ribalta, ainda ter por perto seu público e seus amigos do princípio (“agora as portas vão todas se fechar/No claro do dia, o novo encontrarei”), eu pensei foi no Márcio Borges. Segundo a teoria dele, os sonhos não envelhecem, mas sim, mudam de cara, pegam corpo, ganham cabelos brancos, próteses de quadril, quiçá… E eu, que sou mais besta do que ele, até acho que alguns sonhos morrem, sim, de caducos que são – quem, de qualquer clube que seja, ainda espera um grande país sair do fundo de qualquer noite ou dia, por exemplo? Mas também sei que outros nascem e vão nascendo à medida que nós vamos respondendo à altura, com a pressa de quem já tem ‘antigamentes’ para contar, às batidas do tempo. Na porta da frente, como bem diz, até hoje – e não sei até quando – a Nana Caymmi.
P.S: Eu não deveria colocar, mas sou teimosa e não resisto. Para quem não quiser escutar, Clube da Esquina e Clube da Esquina n. 2, de Lô Borges, Márcio Borges e Milton Nascimento
Clube da Esquina
Noite chegou outra vez. De novo na esquina.
Os homens estão,. todos se acham mortais
Dividem a noite, lua e até solidão
Neste clube, a gente sozinha se vê, pela última vez
À espera do dia, naquela calçada
Fugindo pra outro lugar.
Perto da noite estou,
O rumo encontro nas pedras
Encontro de vez,. um grande país eu espero
Espero do fundo da noite chegar
Mas agora eu quero tomar suas mãos
Vou buscá-la aonde for
Venha até a esquina, você não conhece o futuro
Que tenho nas mãos.
Agora as portas vão todas se fechar
No claro do dia, o novo encontrarei
E no curral D’el Rey
Janelas se abram ao negro do mundo lunar
Mas eu não me acho perdido
No fundo da noite partiu minha voz
Já é hora do corpo vencer a manhã
Outro dia já vem e a vida se cansa na esquina
Fugindo, fugindo pra outro lugar, pra outro lugar.
Clube da Esquina N° 2
Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço
Porque se chamavam homens
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases
Lacrimogênios
Ficam calmos, calmos, calmos
E lá se vai mais um dia
E basta contar compasso
E basta contar consigo
Que a chama não tem pavio
De tudo se faz canção
E o coração
Na curva de um rio, rio
E lá se vai mais um dia
E o Rio de asfalto e gente
Entorna pelas ladeiras
Entope o meio fio
Esquina mais de um milhão
Quero ver então a gente
Gente, gente
Crônica perfeita! O tempo é uma madrasta má, mas a exiguidade dele faz com que tenhamos pressa, e a pressa traz consigo muitas vezes genialidades…
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