Da morte e sua (às vezes) insustentável leveza

Terça-feira, 31 de janeiro de 2023 (fim de mais um mês de trabalho de gente grande)

Às vezes eu fico pensando se é a nossa vida que corre como os janeiros ou se são os janeiros que, depois de um certo tempo,  correm atrás de nós. Já vi passarem 53 e os últimos 27 – os da vida de gente grande, de fato – não foram moleza, não. E parece que a cada ano que passa, eles me pesam mais, no que diz respeito aos fardos físicos. O tempo e sua eterna busca pelo pagamento devido… Mas, a despeito do corpo, que vai respondendo como pode, manter a alma leve é o objetivo mais puro e certo do meu instinto de boa sobrevivência. E a leveza, a verdadeira leveza, a leveza de espírito, mesmo, essa não precisa pagar nada nem ao tempo nem a ninguém.

Neste último janeiro perdi um tio muito querido, irmão mais velho do meu pai. Faleceu na noite de seu aniversário de 91 anos. Com sua morte, nossa família perdeu seu membro mais antigo e uma das nossas grandes referências. 

Meu tio foi um desses homens vigorosos de outros tempos, para quem as dificuldades que surgiam era para serem resolvidas por inteiro, não contornadas. Nasceu, cresceu e viveu subindo e descendo o rio Parnaíba. Conhecia seus remansos, recantos e pesqueiros como poucos. Até bem poucos anos atrás tomava seu banho matinal no rio antes de o dia clarear. E nadava muito e bem. Morando próximo às cabeceiras, no passado de navegabilidade desse rio, que corta praticamente todo o Piauí, foi, juntamente com seu pai, um dos comerciantes que ajudavam a escoar gado e grãos daquela parte do estado. O meio de transporte era rudimentar: grandes balsas de buriti, palmeira leve, de fácil flutuação, que eram construídas por mestres balseiros durante vários dias, para fazer uma única viagem na vida, rio abaixo, já que não tinham nenhum tipo de propulsão e apenas desciam a própria correnteza do rio. Muito popular no seu meio (tinha 101 afilhados de batismo), ele acabou virando político. Foi prefeito do município várias vezes e permaneceu até o fim como referência política até mesmo para seus adversários. E aqui eu falo muito mais de respeito do que de força política, na verdade.

 Eu nunca soube muito dos seus inimigos (se os tinha), mas seus amigos são quase todos lendários personagens da nossa mitologia familiar. Foi, também, um fino galanteador e namorador, no seu tempo, fato que sempre nos rendeu boas histórias. Contava histórias com um tipo de ironia fina que é marca® na família do meu pai, com uma certa tendência para o besteirol da graça menos óbvia. Formava, junto com meu pai, uma das duplas mais divertidas de irmãos que se possa imaginar. Os dois chegaram a desenvolver um dialeto próprio e eram capazes de conversar nele durante muito tempo sem que ninguém conseguisse entender o que falavam. Acho que ninguém conhecia nenhum dos dois como eles se conheciam um ao outro. Era bonito de se ver! As diferenças e mágoas eles superavam. E o que tinham em comum serviu para mantê-los unidos até o fim, mesmo no estado de dissociação mental em que meu pai se encontra atualmente.

Debilitado fisicamente, enxergando muito pouco, mantinha, no entanto, uma lucidez surpreendente. Conversando com ele cerca de um mês atrás, tentando resgatar a história das viagens de balsas, como eram feitas, qual a logística da viagem etc, fiquei surpresa com a crítica bem fundamentada e contundente que ele fez ao governo que interrompeu a navegabilidade do rio, com a construção de uma hidrelétrica, sem oferecer outra alternativa viável. Sem ter nunca frequentado uma universidade, tinha posições bem firmadas sobre vários assuntos que nada tinham a ver com o universo em que vivia. Essas coisas ele enxergava bem, ainda.

Meu tio passou o Natal conosco, numa última visita de quase dois meses, neste final de ano. Na ceia do dia 24 ele pediu para que nós o acompanhássemos numa extensa oração que nenhum de nós conhecia e que ele repetiu de memória. Foi mais uma surpresa boa e um momento memorável para nós. 

Ele comemorou o último aniversário com os últimos amigos de seu tempo, em sua cidade natal. Também estavam com ele o irmão mais novo, amigo querido e companheiro de vida, sua amada esposa, de quem se dizia inseparável, seu único filho, seu único neto e a sua nora. Em algumas de suas últimas imagens, gravadas em vídeo, cantava, com voz do jovem que não era, músicas de um tempo “que era diferente “, segundo suas próprias palavras. E estava feliz e renovado, dava para ver pelo sorriso e pelas sonoras gargalhadas que dava. Bebeu como o jovem que não era mais, também – foi o pedido especial que fez à sua esposa. E, num tropeço descuidado, ele e seu tempo se encontraram e se acertaram finalmente, encerrando sua parte nas corridas de janeiro. Caiu e morreu, sem nem se dar conta disso, como o velho que de fato era. 

Uma morte quase nunca é associada a uma coisa boa. Quero dizer que não se costuma falar ‘morte boa ‘; geralmente se fala em vida boa, mas ‘morte boa’ é um conceito meio controverso. Existem, no entanto, aquelas que deixam, no lugar do luto, aquela sensação de que não faltou nada que realmente importasse. Que foi plena até no seu tempo. E, sobre tempo, falei com meu tio, por telefone, menos de meia hora antes de sua morte. Cumprimentando-o pelo aniversário, desejei saúde e alegrias porque muitos anos de vida mais eu sabia que ele não teria. Disse a ele, também, um “Deus abençoe o senhor”. Ele agradeceu e disse que estava feliz. A voz estava pesada, com a língua, talvez, meio enrolada. Mas a alma, não tenho dúvida nenhuma disso, estava leve. Foi uma morte boa. Eu achei!

 E deixo para ele, por fim (e apenas neste meu pequeno espaço de divagações), um obituário (ou, talvez, um epitáfio) pescado de Milan Kundera:

“O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.”

– Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

P.S: Um post scriptum meio nada a ver: resolvi tentar classificar meus escassos posts em categorias para – quem sabe? – criar mais coragem de escrever. Esta é a primeira crônica com a TAG das coisas que eu sei ou fábulas sem moral etc. Em frente!

2 comentários em “Da morte e sua (às vezes) insustentável leveza

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