Sexta-feira, 31 de março de 2023 (hoje eu acordei com um estrondo, mas não era um canhão, era só um trovão)
— TAG Diz que eu li por aí… —
Tenho reparado numa coisa interessante ultimamente. Mais precisamente nos últimos quatro anos. Desde que eu completei os meus 50 anos, tem havido um sem número de comemorações de 50 anos de algum fato da história que me interessa. Cinquenta anos da primeira viagem do homem à lua, cinquenta anos de Abbey Road, dos Beatles, cinquenta anos do Festival de Woodstock, cinquenta anos do disco Clube da Esquina… O mundo que eu frequento envelhece junto comigo a passos firmes e constantes e eu vou seguindo a marcha da melhor maneira possível, e sem me rebelar. A direção pode até variar, mas o sentido é único: sempre em frente! Mas a estrada… ah! Às vezes ela tem atalhos que nos fazem, mesmo que por poucos instantes, voltar para algum lugar. São atalhos que nos aparecem em momentos necessários, como a ‘sala precisa’, do Harry Potter, onde, se você souber procurar, certamente encontrará o que necessita para aquele exato momento.
Nesta semana eu li uma matéria sobre os cinquenta anos da Série Vaga-Lume, da editora Ática. Para quem não conhece ou não se lembra, esta foi uma coleção de livros que começou a ser publicada nos anos 70 e teve seu boom no início dos anos 80. Os livros foram incorporados ao currículo escolar, como paradidáticos, e O Caso da Borboleta Atíria foi o primeiro que li deles, numa longínqua quinta série do antigo primário. Depois disso eu pedi por mais. O Mistério do Cinco Estrelas, O Escaravelho do Diabo, A Ilha Perdida, Éramos Seis, A Serra dos Dois Meninos foram alguns dos títulos que fui acumulando ao longo do tempo. Foi uma série pioneira, no Brasil, em termos de investimento na literatura para adolescentes. Na matéria que li, uma das editoras da época, Carmem Campos, diz que “a Vaga-Lume seguia uma fórmula imbatível de sucesso: livros escritos para o leitor jovem, com personagens jovens, se deparando com questões típicas da juventude. Textos leves, com muita aventura, mistério e humor. A coleção fez gerações de jovens descobrirem o prazer da leitura.”. E eu concordo. A Ilha Perdida, de Maria José Dupré, foi o título que inaugurou a série e seu campeão de vendas em todos os tempos: vendeu mais de cinco milhões de exemplares. A história é a de dois adolescentes que resolvem visitar uma ilha no meio do rio Paraíba do Sul, na sua época mais cheia, e lá ficam isolados durante alguns dias. Eles se separam e um deles encontra, por lá, um tipo de Robinson Crusoe: um sujeito que vive escondido na ilha há anos, sobrevivendo com tudo o que a natureza tem para oferecer e sem nenhum contato com o mundo exterior desde que foi para lá. É uma aventura deliciosa, que a maioria das crianças e adolescentes gostaria de viver, e eu recuperei o lá de casa para meu filho ler, tempos atrás. Depois do sucesso da série, a Ática lançou o selo Para Gostar de Ler, com crônicas de diversos autores nacionais (e mais tarde, de estrangeiros). Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, Stanislaw Ponte Preta e outros: — Muito prazer! E eu só sei que foi assim.

Na nem-mais-assim-tão-doce lira dos meus cinquenta e poucos anos – que, portanto, já excedeu seus cinco versos – a partitura da leitura teve que mudar, claro! Os bons leitores sabem que a leitura, como tudo na nossa vida, também segue o tempo. As sementes que foram plantadas no verão, germinam, crescem, criam raízes e dão flores e frutos que amadurecem e são degustados segundo o fluxo das estações. Algumas murcham e se perdem e outras, às vezes, sofrem mutações naturais ou enxertias. Stephen King foi uma destas últimas, na minha rotação de culturas. E entrou nela através do meu marido, que é um fã entusiasta e incondicional do escritor. Nossa biblioteca tem uma seção inteira para ele, com todos os seus livros que foram publicados no Brasil. Ela já está transbordando e se ele continuar prolífico por muito tempo, teremos que ampliá-la.

Eu hoje em dia seleciono muito o que vou passar algum tempo lendo. Ainda leio de tudo um pouco, mas o suspense é um dos temas que ficou meio lá para trás, juntamente com as boas lembranças da Agatha Christie e do Conan Doyle. E terror eu evito porque o dia a dia às vezes já é assustador o suficiente e eu preciso manter a ansiedade sob controle, também. Mas, uma das exceções que abro é para Stephen the King, como eu gosto de chamar, para brincar com meu marido. De vez em quando eu devoro um dos livros dele, que escolho a dedo, com muito critério. E mesmo assim, acabo contaminada por um ou outro. E quando eu digo contaminada, é isso mesmo que eu quero dizer, nem chega a ser uma metonímia. Alguns dos contos (ele é excepcional neste gênero!) que li dele muito tempo atrás ainda circulam pela minha mente até hoje, em busca de um entendimento maior sobre a sensação que me causaram. E ainda causam. Com os romances pode acontecer o mesmo. Ele tem um estilo que parece penetrar na nossa mente, abrindo-a para que possamos enxergar o sobrenatural e o fantástico, geralmente com todo o sentimento ruim (e alguma coisa mais que eu não sei explicar) que isso desperta. “Era horrível sentir o sussurro dos pensamentos não exatamente alienígenas do seu subconsciente despertando. Eram como mãos inquietas tateando tábuas soltas ou testando a tampa fechada de um poço. Ela seguiu pensando sobre várias coisas horríveis que tinham em diferentes momentos, abalado seu coração (…)”.
Depois de aberta a mente, a descrição dos lugares é tão precisa e tão fortemente ‘sensorial’ que é como se estivéssemos andando dentro do livro, de fato. Algumas das paisagens são tão claras na minha mente que, se eu fosse artista, poderia desenhá-las. “A luz do sol ainda brilhava, mas sua qualidade estava mudando, perdendo para a luz onírica sedosa extravagante que é propriedade exclusiva dos fins de tarde de junho na Nova Inglaterra, o fulgor de verão de que os adultos nascidos ao norte de Massachusetts se lembravam com tanta clareza.” Só os grandes induzem a isso, eu acho.
E estes dois trechos acima são do último livro que li dele: Love: A História de Lisey. Apesar de não ser um livro de terror, propriamente, o começo dele me deixou tão perturbada que tive dificuldade para conciliar o sono. Com o progresso da história eu fui me aclimatando, a perturbação diminuiu e ficou apenas aquela sensação boa de ler algo muito bom. O livro é fantástico em todos os sentidos! Conta a história de um mundialmente famoso autor de — adivinhem só — livros de suspense, que morre com cinquenta e poucos anos e deixa uma espécie de jogo para sua mulher, com uma série de pistas que a levarão a resolver uma série de problemas em sua vida. Uma irmã mentalmente desequilibrada e a perseguição de um maníaco, fã do escritor, estão entre estes. Além da compreensão da mente conturbada do próprio marido e da catarse que realiza em relação à morte dele. Mas o mote principal dele, que é também o motivo de eu estar falando sobre ele, aqui, gira em torno de um lugar fantástico, Boo’ya Moon, para onde o escritor, Scott Landon, ‘escapa’ (desde a infância difícil) para se curar dos males do corpo e da mente. No surreal universo stephenkingueano, este não é um lugar totalmente do bem. Existem perigos reais, lá, e um dos maiores deles é você não conseguir retornar. Em Boo’ya Moon existe apenas um lugar totalmente seguro: um lago de águas calmas, que seria a fonte onde a nossa mente bebe durante toda a nossa existência, a verdadeira “taça da imaginação”. “É o lago em que todos nós vamos beber, nadar, e em cujas margens, pegar um peixinho; é também o lago que algumas almas destemidas singrarão em seus frágeis barcos de madeira atrás dos peixes grandes. É o lago da vida, a taça da imaginação, e ela imagina que pessoas diferentes vejam versões diferentes dele, embora duas coisas nunca mudem: ele fica sempre cerca de um quilômetro e meio dentro da Floresta Mágica e é sempre triste. Porque aquele lugar não diz respeito apenas à imaginação. É também um lugar
(de renúncia)
de espera. No qual você apenas se senta… e observa aquelas águas oníricas… e espera. Está chegando, você pensa. Está quase chegando, tenho certeza que sim. Porém, não sabe bem do que se trata e assim se passam os anos.”

Todas as vezes que você, que está me lendo agora, escutar, ler ou assistir a uma história que tenha a impressão de já ter ouvido antes, mesmo que em outro contexto, espero que você se lembre de mim. Antes de mim, se você for um leitor assíduo deste blog, espero que você pense no Jorge Luis Borges. E que antes dele veio alguém que escreveu o Eclesiastes.. E se você foi criança ou adolescente nos anos 70 (ou teve uma mãe que o foi), talvez você até passe por Maria José Dupré… Jiro Takahashi, um dos idealizadores da Série Vaga-Lume, disse que “um livro é bom quando termina a aula, começa o recreio e os alunos não param de falar dele.” Terminei de ler Love no começo desta semana e ainda hoje falo dele na hora do recreio. É um romance que tem muito de autobiografia, eu acho. Passeia por muitos temas frequentes entre escritores e há muito da vida do proprio Stephen King, ali. No decorrer da história (e isto é só um spoilerzinho), Lisey acaba entendendo que aquele lago é quase o mesmo para todas as pessoas, apesar de os nomes variarem de uma pessoa para outra. Sua irmã o chamava de Southwind (onde o Malva-Rosa, o navio das garotas-piratas de sua infância ia buscar suprimentos e onde elas iam encontrar seus namorados). Seu famoso marido escritor, que dizia que só os grandes e corajosos conseguiam extrair o melhor dele, chamava o lugar de Boo’ya Moon. Para um dos grandes, foi o Condado; para outro, a Terra do Nunca, e eu, que já peguei o jeito da coisa, completo: de um grande daqui, ganhamos o Sitio do Pica-Pau Amarelo. E mais! Na descrição de Boo’ya Moon não aparecem vagalumes mas eu poderia apostar que a versão da Maria José Dupré seria uma ilha no meio de um rio caudaloso, visto sempre a partir de sua margem numa fazenda da infância dela.

Love: A História de Lisey, acaba fechando em todos os detalhes (Stephen King não deixaria por menos) e, pensando sobre isso, a protagonista faz a seguinte reflexão:
“Não acreditava que Scott tivesse exatamente planejado aquilo tudo; não planejava nem seus livros, por mais complexos que alguns deles fossem. Planejá-los, dizia ele, tiraria toda a graça. Scott afirmava que, para ele, escrever um livro era como encontrar uma linha de cor brilhante na grama e segui-la para ver onde ela iria dar. Às vezes a linha se partia e deixava você na mão. Mas às vezes — se você tivesse sorte, coragem e perseverança — ela conduzia a um tesouro. E o tesouro nunca era o dinheiro que você ganhava com o livro, e sim o próprio livro. Lisey imaginava que os Roger Dashmiel do mundo não acreditavam naquilo e os Joseph Woodbody achavam que deveria ser algo mais grandioso — mais sublime —, mas Lisey vivera com ele, de modo que acreditava. O que ele nunca havia lhe dito (mas ela achava que sempre adivinhara) era que, se a linha não se partisse, ela sempre levava de volta à praia. De volta ao lago em que todos vamos beber, jogar nossas redes, nadar e, às vezes, nos afogarmos.”
É também uma linda reflexão sobre a vida e sobre a história que cada um escreve nela, publicada ou não, não é verdade? Eu achei. E esta é só mais uma das historinhas boas que eu sei…
Um P.S.: Numa outra matéria sobre vagalumes — desta vez os insetos, mesmo —, li que eles estão diminuindo, no mundo. A redução de seu habitat natural e a poluição luminosa, associada a outros eventos tecnológicos (que acabam atrapalhando a comunicação entre eles e, consequentemente, sua reprodução) estão entre as principais causas do ‘fenômeno’. Mas, no ano passado, em uma caminhada noturna, em escuridão de lua nova, numa certa fazenda do sertão do Piauí, vi tantos desses bichinhos no campo que parecia que as estrelas tinham descido à terra. Vida que segue, esperança que luta!
Outro P.S.: Não sou nenhuma especialista em Stephen King, mas sei que, pelo menos meu marido, certamente vai ler isso, por isso eu espero ter entendido tudo direitinho. Se falei alguma heresia sobre este mestre, peço de já meu perdão aos seus fãs. A viagem, de qualquer maneira, é sempre minha.
Mais um P.S, para completar o primeiro : Talvez a humanidade também esteja passando pelas mesmas dificuldades que os vagalumes. Não é?
Adorei! Um dos seus melhores!! Um ode de amor aos livros! E vc entendeu muito bem sim o Stephen King!
Vida longa aos livros!! Vida longa a King!!
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