Segunda-feira, 1° de maio de 2023 (sexto ano DB – depois de Belchior)
TAG das coisas que eu sei

Antes de começar a de hoje, quero dizer que esta é uma crônica de ontem, domingo, 30 de abril. Comecei a escrevê-la, de fato, dentro de um avião, mas a bateria do celular acabou e a carroça da LATAM na qual eu voava não tinha entrada para carregador. Vida que segue sem remédio… E ela vai sair assim mesmo.
Escrevo novamente de dentro de um avião. Mais uma vez não estou sentada à janela. Voando de Belém para Brasília, já passamos das dezoito horas mas vejo, pela janela do meu vizinho de poltrona, que ainda há luz aqui nas alturas do céu que estamos cruzando. Mais uma vez escrevo num domingo, voltando para casa, o que por si só já assinala minha condição de trabalhadora comum em idade produtiva, que precisa assumir sua incontestável e mais pura realidade de segunda-feira. Desta vez, no entanto, não estou entediada. E amanhã será feriado Do dia do trabalhador, para não perder a piada. E então vamos nós novamente, diretamente do céu para a Terra e dela para algum outro plano qualquer.
Sempre gostei de viajar, mas Belém do Pará nunca foi um dos meus destinos favoritos no mundo. Morei naquela cidade quando criança, mais ou menos entre os seis e os oito anos de idade, e tenho lembranças bem antigas de lá. Poucas delas me trazem alguma saudade. Os passeios pelo Bosque e pelo Museu Emílio Goeldi e a sede da AABB, quando ainda era cercada de mata praticamente virgem e um riacho ainda corria por dentro da propriedade estão entre estas. A Irmã Carmelita, minha professora da primeira série do primário é outra boa lembrança que guardo de lá. Fora essas, apesar de toda a riqueza natural e cultural da região – duas coisas que aprecio muito – só retornei muitas vezes à cidade por causa de um tio que morou conosco e acabou ficando por lá. Na intrincada teia de afinidade que minha grande família teceu em torno dela mesma, esse meu tio era muito mais o nosso irmão mais velho do que o irmão mais novo de minha mãe. E foi com ele que acabamos conhecendo muito da beleza e da diversidade natural daquela região do país, que ele se orgulhava de ter como segunda casa. Ele morou lá por mais de quarenta anos e foi o sétimo dos noventa e dois médicos paraenses que a COVID-19 matou (números oficiais do Conselho Federal de Medicina). Morreu como urgentista, no segundo mês ‘oficial’ da pandemia no Brasil, em abril de 2020, exatos três anos e três dias atrás.
Falar sobre lockdown total hoje já parece, como eu mesma achava que um dia iria parecer, uma coisa surreal, mas ele morreu justamente neste período que infelizmente existiu, de fato. Com a família quase toda vivendo no Piauí, nenhum de nós pôde, portanto, estar presente ao seu sepultamento. Ou, como dizemos por aqui, nenhum de nós pôde enterrá-lo. Com isso, muita coisa também parece ter ficado em aberto. Cada um de nós procurou, então, resolver o trauma à sua maneira e todos contamos com o tempo para nos amparar. Tem certas coisas que só vêm com o passar dele e a aceitação é uma delas. E mesmo assim, no meu caso, sempre senti que, para fechar certas lacunas, eu precisava ir até lá, conversar com as pessoas de lá, ouvir delas detalhes que, para não machucar nem a mim nem a ninguém, nunca tive coragem de perguntar. Apesar de já me sentir preparada para isso há algum tempo, tinha prometido à minha tia mais nova, a mais chegada das irmãs de meu tio, que esperaria pelo dia em que ela também estivesse preparada para enfrentarmos juntas esta jornada. Prometi a uma tia e levei também outra, e fomos as três, cada uma com seus propósitos particulares, cumprir esta missão.
Não foi uma missão fácil, tenho que dizer. A nossa é uma família nordestina raiz e o sentimentalismo exacerbado é uma das nossas marcas®. A fleuma britânica passa, portanto, muito longe de nós, e mesmo depois de mais de dez horas de viagem (depois de um vôo de apenas uma hora covardemente cancelado), com apenas três horas de sono, acordamos bem cedo e seguimos bem cedo para o cemitério. A despeito do cansaço e da carga emocional pesada, na chegada, minhas idosas tias nordestinas não deixariam por menos! Uma delas tinha visto o local em sonho, ainda durante a doença do meu tio e a outra queria rezar um terço para ele. Cada uma com seu propósito. Rezei junto com elas, apesar de nenhum sentimento mais forte isto me despertar, exceto o do respeito que tenho pelos pessoas e pelas suas tradições e fé. Mas, quem sai aos seus não degenera, como diziam os mais velhos, e eu também tenho as minhas. Derramei sobre a grama que cobre a sepultura um pouco da terra vermelha da fazenda dos meus avós, que recolhi num saquinho, para este propósito, na primeira vez que voltei lá depois da morte dele.
De volta à casa, andando pelos cômodos dela e pelo jardim, a impressão que eu tive foi que a percepção da ausência física, as lembranças e a saudade ficavam se alternando entre si para ver quem se impunha mais. Nesta alternância, risos, lágrimas e pensamentos silenciosos alternavam-se, também. Um querendo ganhar mais espaço que o outro, também. E foi aí que começaram a chegar as pessoas.
A esposa de meu tio tinha preparado para nós uma recepção como as que tínhamos lá antigamente, com tudo que nunca faltou nelas: caranguejo, churrasco, cerveja gelada e amigos. Destes últimos, meu tio tinha muitos, mas neste dia só estavam lá os que nunca faltaram e que estiveram com ele até o fim. E se alguma vez na vida eu participei de outra reunião como foi aquela, não tenho lembranças. Uma que eu não consiga explicar com clareza o sentimento que gerou em mim, quero dizer. Foi como um velório diferente. Cada pessoa que chegava nos abraçava, chorava, falava, ouvia, ria, pegava uma cerveja e entrava no clima da festa. Homens e mulheres, nenhum deles, sem exceção, entre lágrimas e risos, deixou de dar seu depoimento e de dizer o que meu tio significava para eles. Nenhum deles usou o passado para comentar isso, também, e isso diz muito para mim. Todos eles tinham histórias boas, alegres e engraçadas para contar e, apesar das lágrimas, nenhum sofrimento elas nos trouxeram a todos. Como deve ser, eu acho.
Também pude, durante o dia todo, conversar com cada um, separadamente, e finalmente montar o quadro dos últimos dias do meu tio por aqui. As perguntas que eu não tive coragem de fazer, as impressões médicas e pessoais, os detalhes que na época eu preferi não saber… tudo, enfim, que faltava para fechar este ciclo para mim. E fechei. Considerei cumprida a minha parte da missão.
Falar sobre os nossos mortos, entre nós, é exaltar as suas virtudes. Por aqui fazemos assim. “É mais fácil cultuar os mortos que os vivos”, já disse um poeta da atualidade. Na estranha e ao mesmo tempo, familiar, recepção, não ouvi nada de ruim em relação ao meu tio, e nem esperava por isso. Nós sabemos dos defeitos dos que amamos, mas por que lembraríamos deles em horas de festa? Depois que foram todos embora e um quase silêncio tomou conta da casa, parei para pensar um pouco sobre o dia. Senti um pouco, finalmente, no silêncio que se seguiu à festa, a ausência física do meu tio, e com ela, a saudade, que grande como a casa, por alguns instantes suplantou as lembranças. Mas aí eu me lembrei da festa. Das risadas. Dos amigos… E concluí que nem toda ausência física é vazio. Que saudade é lembrança do que foi bom. E o que foi bom, fica. E, sendo assim, o que morreu, vive. E que a sensação de estranheza que senti durante o dia todo talvez fosse apenas isso: a presença viva que a parte racional da minha mente não conseguia processar totalmente. Pensei na oração do terço, no cemitério, e na terra simbolicamente jogada sobre a sepultura e assenti respeitosamente a isso. Ponto. Pensei na esposa do meu tio/irmão/amigo, e em seus filhos, seguindo em frente, como tem que ser. Estão todos bem. Estamos todos bem… E quanto à vida, ela segue e muitas vezes nos apresenta alguns remédios, sim. Bálsamos que encontramos quando nos permitimos procurar e aceitar. Que assim seja sempre!
Bela crônica! Você conseguiu finalmente enterrar o Avelar, e ele seguiu viagem, em paz e tranquilo. A vida segue em frente, como tem que ser…
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