Domingo, 04 de junho de 2023 (adelante)
– TAG diz que eu li por aí –

Maio pifou, mas hoje a lua está cheia e nasceu em frente à minha janela.
Junho começou como junho, por aqui. Isto quer dizer, basicamente, que a chuva foi-se embora mas já temos manhãs de vento solto e céu azul sem nuvens. Noites frescas, também, embora ainda nem tanto. Nesta época do ano eu vivo com a sensação de que toda manhã é a de domingo. O vento solto e o céu azul me dão aquela sensação boa de estar no meu lugar, no lugar ao qual eu pertenço. E a nostalgia corre livre e solta, também trazida pelo vento. O som do farfalhar das folhas das árvores traz com ele o som dos ventos de outros tempos. O vento sopra cheio da poesia de outros tempos, também, quando a vida ainda era nova, fresca e boa. É um tempo bom para se viver aqui, antes de entrar o segundo semestre e um calor de ante sala do inferno esturricar o verde e nos ferver em fogo alto de manhã até a noite.
Mas o vento é só a minha desculpa esfarrapada de hoje. A lua também. Maio passou e eu não tive vontade de escrever e, como não faço isso por obrigação, deixei passar. Só que o universo conspira a nosso favor, às vezes. — Ou será que foi contra? Não sei… — O fato é que na semana passada, ainda com a consciência meio pesada pela falta de vontade de escrever, li uma crônica do Rubem Braga que falava justamente sobre o tédio de escrever uma crônica, quando o fazemos por obrigação de ofício. No poema Desejos, do Drummond, ele enumera uma série de coisas boas para se desejar a alguém e um dos itens é, justamente, “crônica de Rubem Braga”. Eu, do meu cantinho particular do mundo, no fundo do meu quintal, sentindo o vento no rosto numa manhã de domingo, entendo muito isso. Rubem Braga foi daqueles cronistas que o eram por excelência! Colocava, com naturalidade, a poesia do dia a dia em suas crônicas e assim quebrava a acidez, a amargura e o tédio do cotidiano que ele mesmo vivia. Ou parecia viver, sei lá… E nenhuma crônica é boa se nela não existir a pequena dose, que seja, de poesia que vai fazer com que valha a pena. Assim como a vida, mas este é só um parêntese. Nesta crônica de enfado, por assim dizer, Rubem Braga acaba passando recibo da sua superioridade como cronista e justificando, assim, a homenagem recebida do amigo poeta. Destaca o valor das palavras simples e a poesia que reside nas coisas mais simples, e o poder que elas têm em nos elevar e levar àqueles recantos da mente e da memória onde o vento ainda sopra fresco e puro. Sem necessidade de mistérios ou palavras profundas. Ah, se o mundo entendesse a lógica de Rubem Braga…
Hoje é noite de lua cheia e tem muitos cheiros no meu jardim. Não choveu e o vento embalou minha manhã. Com ou sem Drummond, amanhã será segunda e eu não estarei de mau humor. E deixo, então, para não perder a oportunidade, esta crônica legal de Rubem Braga, como um desejo de um junho bom. Com vento, céu azul e tudo que de mais simples houver e que se consiga enxergar. Como a poesia…
O Mistério da Poesia.
Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era bueno en el Sur. Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos.
E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.
O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.
Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.
De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno, Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.
Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua: “A grande dor das coisas que passaram.”
Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também um motivo de emoção.
Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa “necessidade aborrecida” de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.
Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas…
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— Rubem Braga, no livro “A traição das elegantes”. Rio de Janeiro: Record, 2010.
P.S : O poema citado na crônica é do poeta colombiano Aurélio Arturo e o poema chama-se Rapsódia de Saulo. Vale a pena ler, também. O sentido da crônica está todo nele.
RAPSODIA DE SAULO
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Trabajar era bueno en el sur, cortar los árboles,
hacer canoas de los troncos.
Ir por los ríos en el sur, decir canciones
era bueno. Trabajar entre ricas maderas.
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(Un hombre de la riba, unas manos hábiles,
un hombre de ágiles remos por el río opulento,
me habló de las maderas balsámicas, de sus efluvios…
un hombre viejo en el sur, contando historias).
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Trabajar era bueno. Sobre troncos
la vida, sobre espuma, cantando las crecientes.
¿Trabajar un pretexto para no irse del río,
para ser también el río, el rumor de la orilla?
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Juan Gálvez, José Narváez, Pioquinto Sierra,
como robles entre robles… Era grato,
con vosotros cantar o maldecir, en los bosques
abatir avecillas como hojas del cielo.
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Y Pablo Garcés, Julio Balcázar, los Ulloas,
tantos que allí se esforzaban entre los días.
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Trajimos sin pensarlo en el habla los valles,
los ríos, su resbalante rumor abriendo noches,
un silencio que picotean los verdes paisajes,
un silencio cruzado por un ave delgada como hoja.
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Mas los que no volvieron viven más hondamente,
los muertos viven en nuestras canciones.
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Trabajar… Ese río me baña el corazón.
En el sur. Vi rebaños de nubes y mujeres más leves
que esa brisa que me mece la siesta de los árboles.
Pude ver, os lo juro, era en el bello sur.
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Grata fue la rudeza. Y las blancas aldeas,
tenían tan suaves brisas: pueblecillos de río,
en sus umbrales las mujeres sabían sonreír y dar un beso.
Grata fue la rudeza y ese hálito de hombría y de resinas.
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Me llena el corazón de luz de un suave rostro
y un dulce nombre, que en la ruta cayó como una rosa.
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Aldea, paloma de mi hombro, yo que silbé por los caminos,
yo que canté, un hombre rudo, buscaré tus helechos,
tus perros lamerán otra vez mis manos toscas.
acariciaré tu trenza oscura, un hombre bronco,
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Yo que canté por los caminos, un hombre de la orilla,
un hombre de ligeras canoas por los ríos salvajes.
– Aurelio Arturo (1906-1974) colombiano / do livro “Morada al Sur”. Univ. Externado de Colombia, 2004.
*Fonte: Revista Prosa, Verso e Arte.
“Não sou homem de inventar coisas, mas de contá-las.” Assim falou Rubem Braga. O cotidiano tem que ser contado, e as cronicas servem para descobrir a poesia que há no dia-a-dia. Parabéns pela cronica. E viva os ventos de junho!!
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