Terça-feira, 13 de fevereiro de 2018
“Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia”
(Fernando Pessoa)
Foi em 1985 que eu brinquei meu primeiro carnaval. Dito desta maneira isto parece o começo de um relato das reminiscências de alguma idosa. Faz sentido parecer assim! Quando o feriado de carnaval vira só uma desculpa para se descansar, faz todo o sentido parecer assim. Só que nem sempre foi dessa maneira. Brinquei muitos carnavais na adolescência e mesmo depois de adulta, casada e com filhos, ainda encarei alguns. Mas isto foi num tempo em que carnaval era carnaval de verdade, não essa festa descaracterizada, violenta e sem personalidade que é hoje – diz aqui esta velha de quarenta e oito anos que a vós escreve.
Neste carnaval, curtindo, não a folia, mas um (nem vou chamar de merecido porque não gosto muito de entrar nos merecimentos de ninguém) necessitado e muito ansiado descanso, sem televisão nenhuma e com pouca internet, também, acabei me lembrando daquele primeiro carnaval. Algumas circunstâncias ajudaram na lembrança e, parodiando sem originalidade aquela velha história, o primeiro carnaval a gente nunca esquece.
Aquele foi um carnaval de cidade pequena. Não só de cidade pequena, mas de cidade pequena do interior de Minas, que como toda cidade pequena do interior de Minas, tinha uma praça central que funcionava como o coração da cidade. Desde adolescentes fazendo pitstop depois da escola, velhos conversando à tardinha e jovens se encontrando à noite, todo mundo passava por lá em alguma hora do dia. Naquele tempo, em volta da praça existiam bares, um café (o Café do Vadinho, até hoje um ponto de encontro), uma sorveteria , duas bombonieres (que eram, também tabacarias), e a sede social do Clube Itajubense, o mais tradicional da cidade, ficava em uma de suas esquinas. Era em torno disso tudo que acontecia o carnaval. À tarde todo mundo saía para brincar na rua, com bandinhas e blocos passando pela praça. Desses, o destaque era o Catraca de Canhão, um bloco só de homens vestidos de mulher (naquele tempo podia isso, sim, Arnaldo!), que desfilavam em um caminhão e puxavam um cordão de gente atrás. Era tudo muito divertido e natural – Que tempo, aquele! Os bailes ( ninguém falava festa, tudo lá era baile) noturnos eram no Clube Itajubense. As noites eram temáticas, mas você podia ir como quisesse. Valia fantasia de índio, de cigano, de odalisca, de pirata, de árabe… A única catraca que havia na entrada do clube não era livre, mas só cobrava o convite ou a carteirinha de sócio; o traje era liberado. Em cada mesa do clube tinha pacotes de confete e serpentina e como no salão a gente dançava girando – sim, ainda se girava no salão! – sempre no mesmo sentido, aquilo às vezes terminava com todo mundo emaranhado naquelas tiras de papel colorido e escorregando em confetes, naquele chão encerado. A música que começava a festa era também a última que tocava de madrugada: Cidade Maravilhosa. Eu estava lá no começo e no fim de todas e não foi diferente em nenhum dos dias, e os únicos ritmos que tocaram ali foram o samba, as marchinhas tradicionais e um pouco de frevo – Que tempo, aquele!
Em 1985 eu tinha dezesseis anos e só podia ir aos bailes noturnos com meus pais ou com alguém responsável. Acho que meus pais foram só ao primeiro, o restante fui com meus irmãos mais velhos. Eles tinham uma turma boa naquela época e os “esquenta” antes dos bailes daquele ano foram na nossa casa e na dos pais de outros dos amigos dessa turma. Era uma turma alegre, barulhenta, que gostava de beber e de ouvir e tocar violão, de brincar, de rir e de viver, enfim. Aquele carnaval combinou tudo isso e deixou, para o resto daquele ano, essa vibe boa. Naqueles cinco dias eu torci e engessei o pé numa das noites, quase morri engasgada com uma rajada de confete em outra e tomei as primeiras caipirinhas da minha vida. Foi também o carnaval do primeiro amor criança, como disse o Adoniran Barbosa, que sabia dessas coisas de carnaval.
As circunstâncias, o tempo e depois, a distância, acabaram separando aquela turma legal. Por muito tempo aquele carnaval foi só uma lembrança boa até que uns dois anos atrás, um amigo daquela turma, o Batista, um baixinho invocado e muitíssimo gente boa, me encontrou no Facebook e nós conversamos por um tempão. Ele me mandou umas fotos da turma toda lá em casa, muito animada naquele carnaval e eu acabei me emocionando muito, tanto pela lembrança boa como também porque uma daquelas alegres pessoas das fotos, talvez a mais alegre delas, um amigo da minha idade, já havia morrido num acidente bobo em casa, aos vinte e três anos. Fiquei sabendo depois que um outro, o cara que eu vi ter mais intimidade com um violão até hoje, também tinha morrido um tempinho antes, quando tinha uns quarenta e poucos anos. O Batista era mais amigo dos meus irmãos, mas fiquei em contato com ele pelo Face depois disso, curtindo suas piadinhas infames, seus vídeos de rock e de Fórmula 1 e suas cantorias e boemias pela cidade. Poucos dias atrás, e antes de mais um carnaval, um infarto fulminante encerrou o tempo dele por aqui, também, com pouco mais de cinquenta anos vividos.
Neste carnaval, ainda um pouco sensível a tudo isso – a gente vai ficando assim com o tempo –, fui rever as fotos daquele outro carnaval e aquela alegria toda que ficou registrada nelas. Pensei nos versos do Drummond, no poema Fotografia: “(…) e da evanescência de tudo / edifica uma permanência / cristal de tempo no papel (…)”. Pensei também na vida da gente, que segue assim, de evanescência em evanescência e que destas, às vezes, fica só o registro e a lembrança boa (ou ruim, conforme o caso). Pensei naquele carnaval de festas, descobertas e efervescência adolescentes, e no atual, que foi de descanso, paz de espírito e um pouco de recolhimento. Pensei, ainda, com humildade, gratidão, certa melancolia e alguma ironia, que o importante é a gente ainda ter fevereiros e carnavais. Para sambar, brincar, sonhar, lembrar, dormir ou fazer o que quiser ou puder com eles, enfim.
*Para um irmão que me disse para falar das tristezas também, embora isso não tenha sido de todo triste.
Todos nós temos as cinzas de nossos antigos carnavais guardados em algum bolso, entre serpentinas e velhas marchinhas. Adorei o texto! Trouxe à tona muita coisa aqui também…
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É isso mesmo. E haja bolso!
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Ótimas lembranças de carnavais passados, Lysia!
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