Sobre palavras intraduzíveis e sentimentos idem

Prancheta 1 cópia 3

Sábado, 17 de fevereiro de 2018 (Noite de chuva, em casa e com um tempinho só para mim)

“Aqui, sim, no meu cantinho,

vendo rir-me o candeeiro,

gozo o bem de estar sozinho

e esquecer o mundo inteiro.”

(Julio de Castillo)

Lendo sobre a Dinamarca, algum tempo atrás, vi que eles têm, lá, uma palavra para justificar a fama de ‘povo mais feliz do mundo’: hygge. O hygge não tem tradução literal; é um sentimento, uma alegria, uma sensação de bem-estar, de aconchego, que pode ser criado pela atmosfera dos lugares, por pessoas, por comidas, por tudo isso junto, de preferência… Pelo que entendi, é uma coisa pessoal mas que contagia, que se espalha. Pessoas sorrindo para você nas ruas, sendo simpáticas gratuitamente – isto eu pude comprovar in loco – criando maneiras de se sentir bem, principalmente nas longas noites do rigoroso inverno escandinavo (eles usam e abusam das velas, nos ambientes internos para ajudar na sensação de aconchego)… O hygge pode surgir, por exemplo, numa roda de conversa com amigos no fim do dia, e parece deixar você com aquela sensação de que a vida é boa. Bom, nós podemos pensar que não deve ser difícil achar a vida boa vivendo num dos países mais ricos do mundo, onde criminalidade, saúde e educação, só para citar o básico, não são motivos para preocupação. Só que existem alguns outros países no mundo com condições semelhantes. Na Dinamarca é o hygge que faz a diferença. O povo dinamarquês é um povo forte e vitorioso, de lá saíram os Vikings para o mundo. O hygge talvez esteja no DNA do país, quem sabe…

Outra palavra intraduzível e intrigante é a litost, de origem tcheca. A esta Milan Kundera dedica um conto inteiro do seu Livro do Riso e do Esquecimento. A litost também refere-se a um sentimento, mas é um sentimento ruim. É uma palavra de fácil compreensão quando contextualizada em alguma situação, mas, como verbete, é de difícil explicação. Traduz algo que é um misto de inveja e despeito, aliado ao desejo mesquinho de causar alguma dor, não necessariamente física, a alguém – mesmo alguém próximo, alguém que amamos – que está bem e se sobressai a nós de alguma maneira, em determinado momento ou situação. Ela expressa toda a pequenez da natureza humana quando confrontada com suas limitações e incapacidades. Tem muito a ver com baixa autoestima e poderia se pensar que talvez – apenas talvez – reflita a amargura de um povo que foi subjugado durante anos, séculos, até, por diferentes culturas e regimes governamentais, e ainda teve que competir dentro de sua própria terra por uma ‘isonomia’ (chamarei assim, na falta de uma palavra melhor) entre os tchecos e os eslovacos mais recentemente. A história da (antiga) Tchecoslováquia é uma história meio triste, enfim.

A outra palavra que me vem à mente, quando penso em palavras intraduzíveis, é a portuguesa saudade. É uma palavra bonita pelo que evoca e a saudade leva exatamente a isto: evocação. Mas não a uma evocação qualquer: Quando falamos em saudade, nós, da língua portuguesa, somos remetidos, com uma espécie de nostalgia, a um tempo, uma situação, uma pessoa, uma lembrança de algo que foi bom. Ninguém sente falta do que foi ruim, afinal! Essa espécie de tristeza, nostalgia – ou talvez melancolia diga melhor – que sentimos ao evocar essas lembranças, define o sentimento que chamamos de saudade. O som plangente das guitarras portuguesas, no fado, parece dar à saudade uma tradução musical. Entendedores entenderão, mesmo os estrangeiros. Minha filha, aos quatro anos de idade, com a lógica simples e natural com que as crianças vêem o mundo, disse que “saudade é querer estar perto de alguém que está longe”.Vontade de ver de novo, de ter de novo, de estar perto do que não está mais aqui… O povo português tem um passado de glórias e conquistas, mas também foi dominado e conquistado algumas vezes e acabou ficando para trás na corrida do mundo. Ficou para nós, de qualquer forma, esta representação gráfica, sonora, poética e linda, que traduz um sentimento que a maioria gosta de sentir e nomear.

Mas esta é só uma cronicazinha boba de livres associações, de quando se pode esvaziar a mente em uma noite de chuva fina. A origem dessas palavras, na verdade, vem de mais longe do que o que a modernidade viu. E os sentimentos que expressam são comuns a qualquer lugar onde pessoas habitamos desde sempre.

A chuva caindo de mansinho puxa a saudade. Saudade que é saudade ajuda a criar o hygge, e o hygge… Bom, o hygge deve evitar a litost. No mínimo.

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