Quinta-feira, 19 de abril de 2018
(de volta à vida real)
“— Em minha opinião, luxo é a satisfação total dos cinco sentidos ao mesmo tempo. Estou aquecida e, se quiser, posso estender a mão e tocar a sua. Sinto o cheiro do mar e também que, dentro do Hotel, alguém está fritando cebolas. Um cheiro delicioso. Estou saboreando uma cerveja fria e posso ouvir as gaivotas, a água batendo e o motor do barco de pesca, fazendo tchuc-tchuc-tchuc, de uma forma plenamente satisfatória.
— E o que vê?
Ela virou a cabeça para fitá-lo, sentado ali com os cabelos em desalinho, usando a velha suéter, o casaco de tweed Harris, com reforço de couro nos cotovelos.
— Vejo você. ”
(Da personagem Penélope, dividindo sua concepção de luxo com seu amante, Richard, em Os Catadores de Conchas, de Rosamund Pilcher)
Quando não tenho nada para falar eu gosto de falar de flores. Quando eu tenho muito sobre o que falar, também. Seja como for, hoje vai ser sobre elas. Eu gosto das histórias que elas me contam.
Entre os meus dois locais de trabalho, tem só uma rua para atravessar e duas casas para passar. Eu tenho uma atração especial por casas antigas e essas são duas casas com arquitetura de outro tempo, tipo palacetes, que eram comuns às famílias abastadas do centro da cidade no passado. Uma perdeu todas as características originais, mas a outra está inteiramente preservada em cores, jardim, móveis e espírito. Passo todos os dias por lá e nunca deixo de me admirar com ela. O muro da frente é metade concreto, metade grade, como também era comum antigamente. No pequeno e impecável jardim, os canteiros são recortados dentro do piso cimentado e até as plantas são de outros tempos, com destaque, dentre estas, para uma roseira dessas que não se vêem mais na era das rosas enxertadas. É um jardim onde dá para sentir, só de olhar, o olho cuidadoso do dono. Da dona, no caso. Depois de anos passando por ali e admirando, finalmente conheci d. Madalena, uma senhorinha muito simpática e educada. Um dia desses, bem cedo da manhã passando por lá, vi que ela dava instruções ao seu jardineiro e perdi a vergonha e me aproximei para lhe falar. Ficamos as duas conversando através da grade do muro e eu falei do tanto que admirava o seu jardim e de como achava linda aquela sua roseira, que me lembrava das rosas de que minha avó falava. Ela sorriu e me falou : “ Se eu lhe disser que essa roseira tem mais de vinte anos…” . E me ofereceu uma muda e convidou para entrar e ouvir a história dela. Eu não tinha tempo, infelizmente. Prometi voltar numa outra hora e saí dali para trabalhar pensando que aquele seria um dia mais leve se logo cedo eu tinha conversado com alguém que se dispunha a me contar uma história sobre rosas.
Voltando feliz da vida de um fim de semana de fazenda num outro dia, passando por uma pequena cidade do interior, vi, talvez, o canteiro de flores mais bonito e alegre da minha vida até hoje. Era um canteiro meio aleatório, sem muro, grade ou cerca de demarcação, na frente de uma casinha humilde, na beira da estrada. De dentro dessa casinha recuada, uma velhinha olhava o mundo pela janela. As flores eram as zínias, espécie bem comum no interior, sem nenhum perfume, mas com inúmeras variedades de cores e que atrai borboletas como poucas. Não resisti e estacionei o carro para ver de perto. A profusão de cores, flores e borboletas era tão grande que o projeto de fotógrafa que mora em mim teve que sacar a câmera para registrar. Quem falou à velhinha, no entanto, foi a jardineira. Elogiei suas lindas flores, pedi licença para fotografar e perguntei, humildemente, se eu poderia pegar umas sementes das flores secas. Nesse momento a velhinha ganhou vida nova e com uma agilidade impressionante, começou a arrancar pequenas mudas: “ Minha filha, leve também as mudas! Aqui basta chover que elas ficam assim. Nascem de todo jeito e qualidade. Acredita que o padre veio aqui, outro dia, e levou uma bacia cheia, para enfeitar a igreja?” (Claro que acredito d. Maria Rita – esse é o nome dela – , como não?) . Depois de conversar um pouquinho, disse um “Deus abençoe a senhora” e segui meu caminho, já um pouco atrasada na viagem, e um tantinho mais feliz, também.
A minha avó materna era o protótipo daquelas antigas velhinhas nordestinas do interior. Esposa de politico num tempo em que a política era perigosa nas pequenas cidades do Nordeste, ela era valente, briguenta, inquieta, e tinha sempre uma resposta pronta na ponta da sua língua ferina; não deixava passar nem esquecia nada. Duríssima na criação dos filhos, só foi amolecer na época dos netos. Não era lá muito meiguinha, não, mas adorava esses netos e gostava de flores cheirosas, também. Eu não alcancei mais o jardinzinho que ela teve na fazenda, e ela nunca cuidou pessoalmente dele, ao que me consta, mas me lembro com incrível nitidez da maneira intensa como ela falava no perfume da flor do bugarim e das rosas ‘paroara’ e ‘la França’ – nomes fascinantes para mim, quando criança. Já morando na cidade, ela deu para minha mãe uma muda de bugarim, que foi plantada na nossa casa, em frente ao terraço onde até hoje nós nos sentamos para conversar. Este bugarim já tem quase trinta anos mas todo ano, pela época do Natal, está em plena floração, e quem conhece sabe o quanto suas flores cheiram à noite. Apesar de minha mãe não se animar muito a mexer com jardim, uma de suas grandes alegrias nessa época do ano é ver, além da família reunida, o bugarin da Vovó em toda a sua ostentação de flor e perfume. Deste foi minha mãe mesma quem me deu uma mudinha para plantar.
Ainda não voltei para ouvir a história da roseira da d. Madalena, e no dia que for, não sei se aceitarei a muda que ela me ofereceu. As sementes das zínias da d. Maria Rita, também ainda não plantei nem sei se plantarei. Penso que, mesmo com todo o amor e cuidado que eu teria com elas, são flores de outros contextos e suas histórias não pertencem ao meu jardim. Mas, numa noite do último dezembro, no meu cantinho preferido deste jardim, foi a minha vez de sentir o que minha mãe sente e de ter a Vovó Arabela de volta no cheiro e na visão de um pé de bugarin em sua máxima floração.
Três velhinhas diferentes e suas singelas historinhas de flores:
Uma me sorri às sete da manhã com uma história de rosas para contar.
Outra me fala, com orgulho displicente, de suas lindas flores descuidadas enfeitando a igreja.
E outra me faz sentir, num perfume de flor, o gosto saudoso do seu antigo abraço.
E eu termino aqui pensando, querendo falar de tudo e de nada, nos nossos cinco sentidos e nos luxos de cada um de nós…
Esta foi para não dizer que você não falou (e vivenciou) das flores. O mundo seria bem melhor se houvesse muito mais flores e quem as amasse…
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Que pérola essa história, muito singela e emocionante, nos remete a valores de outros tempos… Só faço um adendo, que você é uma flor de outros tempos também…
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Mas não tão velhinha assim, kkkkk
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