Já podeis, filhos da pátria! Ver o que, mesmo?

Terça-feira, 29 de maio de 2018

“Mas lêem-se jornais como se ama, com uma venda nos olhos. Ouvem-se as doces expressões do redator-chefe como as de uma amante. Pode ser derrotado e feliz quem se julga, não vencido, mas vencedor.”

(Marcel Proust, O Tempo Redescoberto – sobre a maneira equivocada pela qual a população francesa via, através da linguagem camuflada dos jornais, o avanço do exército prussiano durante a Guerra Franco-Prussiana)

Política é um assunto que eu procuro acompanhar hoje em dia como simples espectadora desiludida, e uma das propostas que eu tenho para este blog é falar o mínimo possível sobre isso. De preferência nem falar, porque é pesado e eu quero é leveza. Ainda que não me permita a alienação total (até porque este mundo é o único lugar que eu tenho para viver), é um assunto que eu só discuto com a família e com uns poucos amigos próximos. No fim de uma terça-feira de trabalho duro, o que eu queria ter à mão, na verdade, era uma prosa para descansar a cabeça, parafraseando, por longe, uma crônica do Saramago. Queria ter um pouquinho de otimismo guardado, nem que fosse num vidrinho de rapé, como o que meu avô tinha num armário, para fazer espirrar (meu avô acreditava que um espirro botava as coisas ruins para fora do organismo). Ou então poder falar, com entusiasmo, da linda trepadeira de flores azuis que está fechando a cerca viva do meu quintal. Queria até contar do clarão da lua que eu vi numa fazenda cheia de histórias, no último fim de semana. Mas tem hora que não dá!

Depois de passar um fim de semana fugindo do mundo, numa conversa trivial com meu filho no domingo, ele comentou que ainda não tinha visto aquelas tradicionais bandeirinhas que as pessoas colocam nos carros na época da Copa do Mundo. Eu falei que achava que o povo não estava vendo muitos motivos para isso. Ele retrucou que futebol era uma coisa que ao menos animava um pouco as pessoas. Respondi que ele acabava de dar uma justificativa prática para a política romana do pão e circo (sem pão) e dei uma rápida e ríspida explicação do porquê da construção do Coliseu (Roma destruída por um incêndio, um surto de peste, a erupção do Vesúvio e um povo desolado e insatisfeito, para dizer o mínimo) e dos cem dias de festa que sucederam esta inauguração. Ele me perguntou quem tinha custeado tudo isso e eu respondi que, obviamente, tinha sido o povo, de uma maneira ou de outra. E aí me lembrei dos símbolos da Pátria.

Como todo mundo que foi estudante do ensino fundamental e médio entre as décadas de 70 e 80, eu cresci convivendo com o respeito e a reverência que se dispensava aos símbolos nacionais naquela época. Quando estava na oitava série, uma professora de Educação Moral e Cívica passou para nós um trabalho de grupo que consistia em interpretar todos os símbolos oficiais do Brasil, incluindo os quatro hinos ( da proclamação da república, da bandeira, da independência e o nacional). Eu quis dividir as tarefas no meu grupo, mas ninguém dele se animou nem sequer a ensaiar começar o trabalho. Eu não admitia levar um zero, por isso fiz tudo sozinha. Lá em casa tinha um disco com os hinos e eu aprendi todos, fazendo esse trabalho. Na pré-histórica era antes da internet, a ajuda mais efetiva que eu tive foi a do possante dicionário Aurélio. Durante dias eu pesquisei e traduzi literalmente, para depois tentar entender no contexto, as difíceis palavras desses hinos. E foi dureza! Se hoje, com um vocabulário que pode ser medido pelos anos de vida e pelas milhas literárias percorridas, ainda acho que aquilo foi escrito numa outra língua, imagine-se quando era uma adolescente de treze anos. Deu trabalho, mas no fim saiu uma coisa legal. No dia da apresentação a capa do trabalho só tinha o meu nome, porque eu tinha ficado muito injuriada de ter feito tudo sozinha, mas não consegui levar aquilo adiante. Falei para os outros que se quisessem colocar os nomes, poderiam colocar, desde que refizessem e grampeassem a nova capa. Eles foram fazer isso na secretaria do colégio e a professora viu, interpretou que ninguém tinha se preocupado com a capa, disse que era arranjo de última hora e dali o grupo já foi para a sala com um ponto a menos. Ela era meio intransigente e complexada, a d. Leila… Reacionária como todo professor de EMC tinha que ser, no puerpério recente da abertura democrática após o governo militar.

Voltando ao mundo atual, hoje, no elevador do trabalho, a conversa girou em torno da greve dos caminhoneiros, quem tinha conseguido abastecer, o tamanho das filas etc. Uma colega comentou, com cara de espanto, o fato de a gasolina ter aumentado de preço: “ um movimento daqueles para melhorar as coisas e faz é piorar, né?”. E os outros: “pois é, só caiu o preço do diesel…”, e por aí foi. Eu me senti um pouco mal, confesso. Pensei de novo nos índios brasileiros recebendo espelhos ‘mágicos’ dos portugueses, na época da colonização e vendo o mundo através deles. Lembrei do copeiro do livro do Proust, que lia para os outros criados as notícias ‘animadoras’ dos jornais (tivemos uma gloriosa vitória com grandes perdas ontem, ou algo desse tipo), que enchiam de confiança e orgulho nacionalista o povo francês, enquanto o exército prussiano fechava o cerco a Paris. Pensei no nosso povo, também lendo seus jornais e evoluindo depois para o rádio, a televisão e as redes sociais, ao longo dos seus poucos séculos de existência. Pensei na parte significativa dessa população que, sem sequer entender do que se tratava, assistiu e aplaudiu, nos últimos dias, uma categoria (e seus ‘por detrás’) chantagear e colocar de joelhos não só o Governo, mas o país inteiro, enquanto seu presidente parnasiano se escondia debaixo da cama. E pior – ai de ti, d. Leila! – , ostentando a bandeira (= lindo pendão da esperança) para isso, com gritos (= brados retumbantes) e postagens patrióticas de ‘o gigante (= impávido colosso) acordou’. Bateu aquele desânimo na alma assistir a esta gente ufanista de ocasião apoiar um movimento que acarretou, não um incalculável, porque cálculos são feitos facilmente, mas o inaceitável prejuízo financeiro que o país inteiro teve que engolir nesses dias de greve, e pelo qual vamos ter que pagar nós, os ‘mangaieiros’ de sempre, certo como morreremos um dia. Ver esta crise fazer aflorar, também, como tem sido comum nos nossos momentos críticos, a triste natureza do brasileiro, que de bandeira em punho em tempo de lágrimas, aproveita para garantir e/ou aumentar os lucros da sua própria venda de lenços, foi duro também. Ver, ainda, no meio disso tudo, o inadmissível clamor pela volta de um regime militar, talvez tenha sido pior.

Antes de voltar às minhas flores, poesias etc, neste ano eleitoral em que teremos que escolher entre condenados, coronéis, capitães, filhotes de ideologias cansadas e não sei mais quantas alternativas esdrúxulas, eu, se fosse professora de Brasil, deixaria aqui apenas as duas lições da d. Leila: A primeira, tão óbvia quanto didática e valiosa, é a lição da capa: vai ter sempre alguém importante preocupado primeiramente com o que vai aparecer nela. A segunda, não menos didática, mais óbvia e ainda mais valiosa, é a necessidade de se passar da capa, a do conhecimento, em si. No caso dos hinos, isto é contundente! Se os nossos patriotas fossem além, entendessem o que cantam de peito estufado, talvez entendessem também o resto. Eles falam, entre outras coisas, de independência, glórias, prosperidade… coisas que nós, com todo o nosso nacionalismo injetado, ainda não conseguimos conquistar. E todos eles falam, também, sobretudo, sobretudo, do único valor que nós ainda temos nesta grande feira de ‘mangaios’ conhecida por Brasil, que é a nossa liberdade.

Meu filho é um otimista gente boa! Embora não deseje que seja mais um derrotado feliz, para ele vou deixar o direito de vibrar um pouco com o seu futebol. Eu também já sonhei ( talvez nunca deixe de sonhar) e vibrei com o Brasil. E talvez faça bem a ele comprovar, na prática, que assim como diz a música do Biquini Cavadão que ele tanto gosta, ser campeão da copa do mundo (também já passei por isso) só leva um mês. O povo terá seu circo e as bandeirinhas aparecerão. Depois isso passa rapidinho.

4 comentários em “Já podeis, filhos da pátria! Ver o que, mesmo?

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  1. Os enormes problemas estruturais e conjunturais do Brasil nos levam mesmo ao desencanto e ao distanciamento de questões que nos afligem ou revoltam, contra as quais pouco ou nada podemos fazer.
    Entretanto, como andorinhas solitárias, certamente não podemos fazer verão, mas, de alguma forma, precisamos atuar, com atitudes e comportamentos exemplares que podem ou não ser referência para outros, por exemplo.
    E, por mais difícil que seja, devemos nos esforçar para resgatar uma dosagem de otimismo além da que pode ser armazenada em um frasco de rapé (ou torrado), que o vovô Manoel Bastos mantinha sempre cheio para o uso referido – que, confesso, também utilizo até hoje (kkkkkk)

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