Pra não dizer que não falei de poesia e das flores da estação

Domingo, 10 de junho de 2018 (um domingo daqueles do fundo do meu quintal)

Prancheta 1 cópia 10

Nesta semana um amigo enviou, por whatsapp, um vídeo do Geraldo Vandré, hoje com 81 anos, cantando Caminhando (Pra Não Dizer que Não Falei das Flores), com a Orquestra Sinfônica da Paraíba, num concerto gratuito para o público, em João Pessoa, sua terra natal. Foi a primeira vez que ele cantou esta música em público, no Brasil, desde 1968. O concerto aconteceu em março deste ano e como eu não tinha visto nada a respeito, fiquei curiosa e fui ver uma entrevista dele para uma TV de lá. Na entrevista ele não falou praticamente nada sobre política, criticou suas biografias não autorizadas e respondeu com indiferença – não sei se intencional ou não – sobre os parceiros musicais da sua época (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque…). Ainda sobre música, disse que hoje só escuta música erudita, instrumental, que não conhece Anitta nem Pablo Vittar e pensa que no Brasil ainda se toca muito rock. De tudo o que ele disse e deixou de dizer, achei uma coisa interessante que peguei pro meu Caderninho Azul® e que foi dita quando o repórter perguntou como ele gostaria que essa música fosse lembrada no Brasil. Ele respondeu, com aquele jeito meio impaciente dos velhos em idade e experiência: “do jeito que o Brasil quiser, o Brasil é quem decide”.

Daí eu fui lá no Carlos Pena Filho e no Manuel Bandeira.

Carlos Pena Filho foi um poeta pernambucano que eu só descobri uns dois anos atrás, quando meu sogro voltou do Recife trazendo um lindo poema dele, que faz referência a um tradicional reduto frequentado pela boemia artista e intelectual dessa cidade entre as décadas de 40 e 60, o Bar Savoy. Ele morreu muito jovem, aos 32 anos, e eu nunca tinha lido nada seu. Falha minha, mas talvez falha maior a do Brasil, que nunca se empenhou em promover esse poeta incrível. Fiquei encantada com o poema e procurei por mais coisas dele. Na falta de um livro físico (as poucas edições que foram lançadas estão esgotadas e as dos sebos são caras), saí pescando seus poemas aqui e ali, pela internet. Ele era um poeta do azul e só aí já me ganhou, mas além disso, seus poemas têm, para mim, aquela marquinha da poesia que se sente na pele. Li também, sobre ele, alguns artigos com críticas da obra e alguns relatos de escritores e poetas lamentando sua morte prematura. Entre os grandes, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto e Gilberto Freyre eram fãs da sua poesia, só para dar referências. No meio de tudo o que li, a história do Manuel Bandeira foi a que chamou mais minha atenção. Quando saiu o Livro Geral, do Carlos Pena, o Bandeira escreveu uma carta ao autor, elogiando o livro, no qual identificava “ecos da sua própria poesia”. Esta carta infelizmente nunca chegou às mãos do destinatário porque foi com o endereço errado e só foi devolvida ao remetente um ano depois. Carlos Pena morreu durante esse intervalo de tempo e Manuel Bandeira ficou desconsolado por ele nunca ter lido seu elogio ao livro. Ele conta esta história na crônica Carta Devolvida, que eu ainda não consegui encontrar para ler na íntegra, infelizmente, mas, num bonito trecho dessa carta de poeta para poeta, com uma delicadeza que só se iguala à da própria poesia do colega, Manuel Bandeira diz o seguinte: “Não é verdade que a nossa melhor glória são esses resíduos que deixamos na memória dos outros?”

Caminhando foi inspirada na Passeata dos Cem Mil, realizada durante o período do governo militar, no Brasil, em 1968. Foi um hino para pelo menos duas gerações de brasileiros. Ainda assim, numa outra entrevista com a imprensa antes do concerto de João Pessoa, embora emocionado com o coro das pessoas entoando a música do lado de fora do prédio, Geraldo Vandré disse que nunca teve intenção de fazer música de protesto. Falou que tinha “mais do que reservas, uma posição de impugnação total, a esta denominação música de protesto” e seguiu explicando, com propriedade e conhecimento, o que é, como é e onde nasceu a verdadeira protest song. Completou, ainda: “Acho que o protesto é próprio de quem não tem poder, não sabe o que é poder. Quem tem poder não protesta, exerce o poder. Só fiz as canções que fiz, porque tinha condições materiais, sensoriais, pensamento, para fazê-las. Nunca pretendi fazer uma canção para o povão”. A declaração foi esta e o entendimento (?) exato disso, não consegui tirar, apesar de não ter como questionar, em nenhum momento, a inteligência e a lucidez dele. Ainda na entrevista ele reconheceu a importância daquele concerto para o país, mas nem ele nem o Secretário Municipal de Cultura revelaram o cachê do show. Quando perguntaram a respeito disso, ele brincou, dizendo que ainda continuava sendo “a puta mais cara do Brasil”. Questionado, também, se ainda era de esquerda, respondeu assim: “Na mão esquerda trago uma certeza, na mão direita uma garantia. Atenção: às vezes eu troco de mãos”. E quem nunca, não é verdade? Parece que somos todos iguais, no final. Caminhando, cantando, sonhando, lembrando… De braços dados ou não.

Alguns sonhos passam mas suas glórias ficam. E parece que cada um ainda pode decidir como quer conviver, individual ou coletivamente, com isso. Ainda acho Caminhando uma música lindíssima, além de icônica, diga o Vandré o que disser. Mas acho, também, que na vida como no bar Savoy, todo mundo acaba, mesmo, é cantando uma música (ou hino, ou o que o Brasil ou o mundo decidir, sei lá!), cujo refrão pode ter sido tirado do poema do Carlos Pena, que diz factualmente assim:

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

(Carlos Pena Filho, Chopp, do Livro Geral)

6 comentários em “Pra não dizer que não falei de poesia e das flores da estação

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  1. “Ali que é o Recife
    mais propriamente chamado
    com seu pecado diurno
    e o seu noturno pecado,
    mas tudo muito tranqüilo,
    sereno e equilibrado.
    No andar térreo, moram os bancos
    (capitais da Capital)
    no primeiro, a ex-austera
    Associação Comercial,
    no segundo, a sempre fútil,
    Câmara Municipal
    e, no terceiro, afinal,
    está a alegre pensão
    da redonda Alzira, a viga
    mestra da prostituição.
    Mas como vivem tão bem,
    em tão segura união,
    qualquer dia, todos juntos
    vão fundar a Associação
    dos Múltiplos Pecadores,
    com banqueiros, comerciantes,
    prostitutas, vereadores,
    ingleses do British Club,
    homens doentes e sãos,
    pois o camelô já disse
    que somos todos irmãos.
    Esse é o bairro do Recife
    que tem um cais debruçado
    nas verdes águas do Atlântico
    e ainda tem o cais do Apolo,
    apodrecido e romântico,
    beleza que ainda resiste
    lá nos desvãos da memória
    deste bairro que se escoa
    pela Ponte Giratória,
    que é uma estranha armação
    que agüenta em seu férreo dorso
    automóvel, caminhão
    e trem de carga bem cheio,
    mas não resiste às barcaças
    que a fendem de meio a meio.”

    Eu já o conhecia. Fantástico e cultuado por lá.

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