Vai, Neymar! Vai, Messi! Vai, Cristiano! E sai que é sua, Saramago!

Quinta-feira, 21 de junho de 2018

(uma crônica atrasada de domingo)

Tempo de Copa do Mundo. Não assisto mais aos jogos mas converso muito e acompanho as notícias. Pelo que li e ouvi por aí, parece que enquanto Neymar decepciona o Brasil e a Argentina trinca os dentes com Messi, o mundo cai aos pés de Cristiano Ronaldo. E eu, do fundo do meu quintal, foi a outro português que me curvei mais uma vez.

Já disse aqui uma vez que acho que eu e o Saramago somos almas gêmeas. É um dos meus autores favoritos e um desses que não costumo dividir com todo mundo. Sua obra é como um tesouro com jóias quase sempre em estado bruto, que mesmo depois de lapidadas, não costumam cair muito no gosto geral da maioria das pessoas que eu conheço. É um escritor que eu venho economizando, lendo em pequenas doses de uns tempos para cá porque como ele não vai mais produzir nada, quero ter por muito tempo ainda alguma coisa ‘nova’ dele para ler. Esta é a minha maneira particular de imortalizá-lo e de seguir em sua companhia (Machado de Assis e o Gabo também mereciam isso, mas não tive esta idéia antes e agora é tarde). Assim, de tempos em tempos eu saio procurando alguma coisa dele ou sobre ele, pela internet. No último domingo, entocada num cantinho do meu jardim enquanto enrolava para enrolar o jogo do Brasil, consegui baixar as duas primeiras crônicas de um livro dele que não encontrei por aqui. Ainda estou guardando a segunda para ler depois mas a primeira é esta pequena crônica auto biográfica que posto aqui hoje. Na íntegra, porque ela por si só se comenta e qualquer resenha que eu fizesse não lhe chegaria aos pés.

A Cidade

“Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. Se cometera algum crime, se pagava culpas de antepassados, ou se apenas se retirara por indiferença ou vergonha — não se sabe. Talvez um pouco de tudo isto, tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nossa casual existência. Vivia o homem fora dos muros da cidade, e dessa segregação deliberada ou imposta acabou por fazer um pequeno título de glória. Mas não podia evitar (isso não podia) que nos olhos lhe pairasse a névoa melancólica que envolve todo o ser desterrado.
Algumas vezes tentou entrar. Fê-lo não por um desejo irreprimível, nem sequer por cansaço da situação, mas por mero instinto de mudança ou desconforto inconsciente. Escolheu sempre as portas erradas, se portas havia. E se lhe aconteceu julgar que entrara na cidade, talvez sim, mas era como se a par da cidade real houvesse imagens dela, inconsistentes como a sombra que nos olhos se tornava mais e mais densa. E quando essas imagens se desvaneciam, como o nevoeiro que das águas se desprende ao toque luminoso do sol, era o deserto que o rodeava, e ao longe, brancos e altos, com árvores plantadas nas torres e jardins suspensos nas varandas, os muros da cidade brilhavam outra vez inacessíveis.
De dentro vinham rumores de festa. Assim lho dizia, mais do que os sentidos, a imaginação. Rumores de vida seriam, pelo menos. Não a morte solitária que é a contemplação obstinada da própria sombra. Não o desespero surdo da palavra definitiva que se escapa no momento em que seria, melhor que uma palavra, uma chave. E então o homem rodeava as longas muralhas, tacteando, à procura da porta que obscuramente lhe estaria prometida.
Porque o homem acreditava na predestinação. Estar fora da cidade (se disso tinha real consciência) era para ele uma situação acidental e provisória. Um dia, no dia exacto, nem antes, nem depois, entraria na cidade. Melhor dizendo: entraria em qualquer parte, que a isto se resumia o seu esperar. Que a névoa da melancolia se tornasse noite, seria um mal necessário, mas também provisório, porque o dia predestinado traria uma explicação. Ou nem isso, sequer. Um fim, um simples fim. Uma abdicação já serviria.
O homem não sabia que as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor.
Veio a batalha. Como nos poemas de Homero, também os deuses entraram nela. Combateram a favor e contra, algumas vezes uns contra os outros. O homem que lutava para viver dentro dos muros da cidade cruzou espada e palavras com os deuses que estavam do seu lado. Feriu e foi ferido. E a luta durou longos e longos dias, semanas, meses, sem tréguas nem repouso, ora junto às muralhas, ora tão longe delas que nem a cidade se via, nem se sabia bem já que prémio estaria no fim do combate. Foi outra forma de desespero.
Até que um dia o terreno da luta ficou livre e desimpedido, como um estuário onde as águas descansam. Sangrando, o homem e o deus que lhe ficara olharam de frente as portas, abertas de par em par. Havia um grande silêncio na cidade. Ainda amedrontado, o homem avançou. A seu lado, o deus. Entraram — e foi só depois que entraram que a cidade se tornou habitada.
Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade de José se lhe quisermos dar um nome.”

É, José Saramago deixou coisas assim… E essa sua cidade, ela bem pode ser uma cidade de muitos outros nomes. De homens e de mulheres. Quem sabe se de Cristiano Ronaldo, de Messi e sabe-se lá se até mesmo de Neymar? Quem é que sabe — e pode — dizer ou julgar, afinal, as lutas internas e externas que cada um travou para conquistar, entrar e finalmente habitar e encher de vida e de festa, se assim for, a cidade de seu próprio nome?

Saramago talvez soubesse. Talvez.

A benção, mestre!

2 comentários em “Vai, Neymar! Vai, Messi! Vai, Cristiano! E sai que é sua, Saramago!

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