Quarta-feira, 18 de julho de 2018(quarta-feira de um julho pesado)
Na semana passada terminei de ler o livro Só Garotos, da Patti Smith. Ela é, além de um dos nomes femininos fortes do mundo do rock, uma dessas artistas versáteis cuja arte passeou também pela pintura, poesia, literatura e fotografia. Gosto da voz dela, mas não curto muito sua música porque o punk, com algumas exceções, sempre foi pesado demais para minha cabeça. Mas gosto de histórias interessantes e achei que a dela seria uma. Não me decepcionei. Patti tem um estilo de escrever leve, claro, muitas vezes cru e algumas vezes bem poético. Foi curioso ver, a despeito de não me identificar com sua música, no meio das grandes referências dela, algumas das minhas próprias. O gosto pela poesia foi a primeira delas. Patti Smith foi ‘acusada’ de trazer a poesia para o punk. Sua primeira grande referência foi Rimbaud – e eu fiquei só pensando que se algum poeta tivesse que inspirar o punk, claro que tinha que ser o Rimbaud! Mas teve mais, teve William Blake, teve os dois Dylan – o Bob e o Thomas – e teve também uma certa maneira de ver as coisas e de sentir, por assim dizer, os lugares e suas vibrações. Foi fácil demais, para mim, acompanhar seus passeios pelos corredores do lendário Hotel Chelsea, de Nova York, por onde passaram, moraram, drogaram-se e/ou acabaram-se, integrantes de várias gerações de artistas, de antes e de depois da Geração Beat. Deu para sentir perfeitamente o que ela sentia enquanto imaginava – e também via – aquelas pessoas, suas vidas e suas histórias. Ela diz, por exemplo, que quando se mudou de lá, o que mais lhe doeu foi pensar que ia ficar longe do quarto onde Dylan Thomas tomou seu último porre. Eu entendo isso! E acho que ela tinha que fazer punk rock, mesmo.
Nesse livro ela conta a história de sua vida desde que saiu de casa, quase uma adolescente ainda, e da maneira intensa como dividiu essa vida com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, numa das simbioses – é o nome que me vem à cabeça – mais curiosas que alguém poderia imaginar. A história dos dois entrou para o meu Caderninho Azul na categoria ‘histórias de amor e amizade para se lembrar pela vida’. Eles se encontraram por acaso, nas ruas de Nova York, quando eram ambos aspirantes a artistas que nem sequer tinham encontrado seu tipo de arte, sem dinheiro para comer nem lugar para dormir no efervescente final dos anos 60. A afinidade foi imediata. Descobriram que tinham nascido no mesmo dia e no mesmo ano e a partir daí dividiram tudo, de sanduíches mendigados até ambições e pensamentos, passando por uma estrelinha azul que virou o símbolo dos dois. Sobreviveram e ascenderam duramente na exdrúxula cena artística daquela época até chegar onde queriam – ou nem imaginaram, talvez – chegar. Um empurrando e apoiando o outro sempre, até o fim da vida dele, aos 42 anos. Dizendo desta maneira fica parecendo um daqueles melosos exemplos de superação e vitória de um livro de autoajuda, mas não é. Não é nem sequer uma história cheia de belezas aparentes e comuns, muito pelo contrário. Fome, drogas, prostituição e todo o mais do piso inferior da contracultura daqueles tempos está bem exemplificada no livro. A maior parte das vezes tendo os dois ou um dos dois como protagonista. Eles foram amigos/amantes/irmãos, e viveram um relacionamento que as pessoas tiveram – e ainda têm – um pouco de dificuldade para entender. Tinham, pelo menos na maneira como ela conta, aquela sintonia natural, aquele tipo raro de comunhão de mentes que a gente vê ou encontra poucas vezes na vida. “Patti, ninguém vê as coisas como nós”, foi uma das máximas de Robert. Disse isso para ela muitas vezes, até mesmo depois de ter assumido sua homossexualidade e já estar vivendo outros relacionamentos. Ela se casou depois com o músico Fred ‘Sonic’ Smith, com quem teve dois filhos; Fred disse a ela uma vez, depois de uma sessão de fotos tiradas por Robert, que não sabia como é que ele fazia aquilo, mas em toda foto que ele fazia dela, conseguia fazer com que ela ficasse parecida com ele. Meu palpite para isso é que existe a arte e existe a técnica, mas existem coisas que vão além das duas, ao que parece.
O livro é nostálgico e melancólico sem cair no melodrama. Ela descreve momentos simplesmente memoráveis nele: Um afago carinhoso de Salvador Dali, com sua capa e seu bigode, depois de uma entrada triunfal num bar. Uma ‘audição’ de Janis Joplin sentada numa espreguiçadeira, com seus músicos sentados à sua volta, trabalhando as músicas de um novo disco. Uma conversa trivial de escadaria com Jimi Hendrix, ele explicando para ela seu sonho de um concerto universal para a paz. A fascinação por Brian Jones, a tristeza por sua morte e os poemas que fez para ele. O aniversário dela e de Robert, sempre comemorado com um humilde e regrado passeio à praia de Coney Island, porque ela gostava da idéia de um metrô que fosse até o mar. A visão presencial do outdoor war is over If you want it, de John Lennon e Yoko. Uma visita do poeta Gregory Corso, que diante de um crucifixo onde estava escrito memento mori (lembre-se de que você é mortal) aos pés do Cristo, adverte-a de que nós somos, mas a poesia, não… E muitos outros momentos que ela vai narrando com um mundo de pequenos e ricos detalhes que deram verdadeira alma ao livro. Um olhar de hoje lançado sobre o passado, ante o qual ela diz ter estado presente nesses momentos sem tê-los, contudo, reconhecido como momentos, devido à sua juventude e à preocupação com seus próprios pensamentos na época. Patti narra, ainda, a mudança gradativa pela qual foram passando as pessoas com quem conviveu naquele meio; a lenta decadência da vida e da carreira de muitos, empurrados para o lado pelo vento inclemente que traz o que vem de novo. Em uma determinada parte do livro, quando fala de duas drag queens famosas, suas amigas, ela diz que “ambas estavam à frente de seu tempo, mas não viveram o bastante para ver chegar o tempo para o qual avançavam”. Acho que a maioria, ali, estava, na verdade, e também não viveu para tanto. Ela sobreviveu a todos e até a Robert, que, juntamente com ela, talvez tenha sido dos mais estranhos personagens da estranha peça daquele estranho teatro.
Robert Mapplethorpe morreu em 1989, aos 42 anos, de complicações da AIDS. Patti acompanhou sua vida até o fim, dividindo-se entre as cidades de Detroit, onde morava com o marido e os filhos, e Nova York, onde Robert ainda vivia e se tratava. Ela prometeu a ele que um dia escreveria a história dos dois e o fez de maneira impecável. Quando descreve sua última visita a Robert, faz isso com aquela prosa poética que não se inventa, tira-se da alma: “A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar.”
Ela demorou, de fato, quase uma vida para cumprir sua promessa; o livro só foi lançado em 2010. No final dele ela se pergunta por que não conseguia escrever algo que fosse capaz de despertar os mortos, dizendo que essa é sua busca mais doída, e que nunca superou, para isso, “o desejo de produzir uma corrente de palavras mais valiosas que as esmeraldas de Cortés”. Consola-se com as relíquias que lhe couberam do legado material de sua vida com ele: “um cacho de seu cabelo, um punhado de suas cinzas, uma caixa com suas cartas, um pandeiro de pele de cabra e, nas dobras do desbotado lenço roxo, um colar com duas placas roxas e escritas em árabe enfileirando suas contas prateadas e pretas, que me deu o menino que amava Michelangelo”
A despedida resume tudo o que no livro ela quis dizer: “Dissemos adeus e saí do quarto dele. Mas algo me atraiu de volta. Ele caíra em um sono leve. Fiquei ali parada olhando para ele. Pacífico, como uma criança antiga. Ele abriu os olhos e sorriu.”Já voltou?” E tornou a dormir. E assim minha última imagem foi a primeira. Um jovem adormecido sob um manto de luz, que abriu os olhos com um sorriso de reconhecimento para alguém que nunca fora uma estranha para ele”
Não sei quanto valiam as esmeraldas de Cortés, mas para mim Patti Smith foi capaz, sim, com sua narrativa, se não de despertar os mortos, pelo menos de conseguir mostrar algo de suas essências, e de uma maneira tão bonita quanto poderia ser sem fugir à realidade deles. Guiada pela ótica dela (descontando-se o fato de que uma autobiografia é sempre algo tendencioso), consegui ver todos com clareza. Cheguei até a entrar com ela e Robert, tanto na idéia como no vagão daquele metrô cuja estação final era o mar. Se fosse resumir a idéia que o livro me passou, diria que é um olhar bem interessante sobre os bastidores da cultura pop de Nova York no final dos anos 60 e início dos 70. Diria também que apesar do tom de crônica autobiográfica, ele é, na verdade, um bonito romance de estranhas almas gêmeas que se entendiam sem precisar de palavras – e apesar delas. E diria ainda, por fim, que Patti Smith pode ter criado, tocado e cantado punk sua vida inteira, mas, ao cumprir sua promessa para Robert Mapplethorpe, foi um lindo e tocante blues que ela escreveu, na verdade. De sua música continuo não gostando, apesar de escutá-la com mais atenção agora, mas termino com uma última referência para justificar essa estranha afinidade que tive com ela e com o livro. Contando um certo episódio do auge dos tempos difíceis e as brincadeiras que saíam dali, apesar de tudo, ela termina o relato assim: “Risos. Ingrediente essencial da sobrevivência. E nós ríamos muito.
E esta é só mais uma história de uma história, e as histórias que eu sei são as da gata preta…
Ótima resenha! O livro já está na minha fila de livros a serem lidos, esperando pacientemente a sua vez…
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