De quando eu respirava o vento e brincava com o tempo

Domingo, 02 de setembro de 2018 (e a gente vai levando)

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“Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós.”
– Manoel de Barros, Memórias Inventadas: a segunda infância.

Uma fazenda do sertão nordestino não é, na maior parte do tempo, um lugar de belezas convencionais. Mas, de seca e poeirenta, com ossadas de boi pontilhando de branco aqui e ali aquela paisagem vermelha (lembrando, de longe, Guimarães Rosa) nos meses sem chuva, elas podem se transformar em breves paraísos verdes nos poucos meses chuvosos. A Várzea, fazenda da minha infância, não fugia a esta regra em nada. Por lá corriam dois riachos: um perene, o ‘Rio’ Itaueira, e um temporário, o Riacho do Escorrega. Dos dois o mais legal para mim sempre foi o do Escorrega. Com seu leito praticamente todo de areia, quase que totalmente sombreado, de cada lado, por árvores de grande porte (entre estas os temidos oitizeiros, onde à noite as almas do outro mundo costumavam se reunir para rezar – sabe-se lá por que -, segundo as lendas locais), era uma das minhas caminhadas preferidas em qualquer que fosse a estação do ano. No período chuvoso, quando a água corria, tinha um lajeado que era bom para tomar banho. Na seca, seu leito de areia fria servia como um refresco depois de horas perambulando sob o sol. Caminhar descalça naquela areia fria ainda é uma das melhores lembranças que eu tenho da infância. Ali a gente caçava ninhos de passarinhos, fazia piqueniques, cavava cacimbas, brincava de esconder e de assustar os outros, e de tudo o mais que tivesse vontade e pudesse imaginar, no tempo em que usar a imaginação para brincadeiras era normal e totalmente viável.

Todos os anos eu volto àquela fazenda. Faço isso há anos! Funciona como uma espécie de ritual para renovação das forças, mas acho que é até mais do que isso. Já fui com meus filhos e meu marido algumas vezes, mas hoje é uma viagem que eu geralmente faço sem eles. Não por nenhum motivo obscuro ou egoísta, nada assim. Apenas por uma questão prática, mesmo. Não é um lugar com atrativos especiais, não tem internet, é quase mato raiz, como se diz por aí, e o significado que aquilo tudo tem para mim, ninguém é obrigado a compreender. Passar dois, três dias, praticamente sem contato com o mundo ‘exterior’ não é uma coisa que eu ache que tenha o direito de pedir a ninguém que não tenha vivência com isso. Paraísos são, afinal, concepções pessoais e, assim como o meu jardim, aquele é um dos meus particulares dentro do mundo.

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Este ano fui lá em março, no final das chuvas. Na véspera da viagem, enquanto eu preparava o jantar, meu marido comentou que eu estava dançando pela cozinha. Não tinha percebido, mas isto diz muito do meu estado de espírito diante da perspectiva dessa viagem. É uma alegria genuína e muito antiga, que vem ‘de dentro’, e espontaneamente. Sempre foi assim, desde quando eu era criança e meu avô ia me buscar para passar as férias lá. Só o que mudou foi a viagem, em si. Os 350 quilômetros que eu antes percorria com impaciência, no ônibus da Princesa do Sul ou no banco de trás de um carro, hoje, ao volante do meu, faço tranquilamente, parando onde me dá vontade, curtindo a paisagem e as lembranças das muitas histórias de outras viagens por ali.

Na viagem deste ano levei minha tia/mãe/madrinha, uma sobrinha de seis anos e uma amiga que entende bem essas coisas de mato. Numa das manhãs resolvi levar minha sobrinha e minha amiga para conhecer o Riacho do Escorrega. A caminhada até o lugar dos antigos banhos é longa, por dentro do riacho porque a trilha que havia pela margem nem existe mais. Caminhando novamente naquele leito de areia fria, por onde hoje quase ninguém mais caminha (parafraseando, de leve, o Tolkien no jardim de Elrond, no final do Retorno do Rei), ouvindo os ‘gritinhos de exclamação’ – como ela mesma chamou – da minha sobrinha, senti como se tivesse a idade dela novamente. Ali eu não era mais era sua tia adulta, mas sua companheira numa aventura legal, e aquela era uma aventura do passado. Ensinei a ela como cavar uma cacimba e fui respondendo, com a naturalidade de quem descreve a própria casa, todas as perguntas que ela ia fazendo, enquanto caçava, agora com minha câmera fotográfica, libélulas azuis e verdes, flores, pássaros e borboletas, e ia, ao mesmo tempo, procurando uma maneira de passar por árvores caídas, poças mais fundas, moitas de cansanção, cercas derrubadas e não sei mais quantos outros obstáculos que íamos encontrando pela frente.

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Quando eu era criança, na época das chuvas, única do ano em que o riacho ‘bota água’, minha avó não deixava a gente tomar banho nele, com medo das enxurradas que às vezes vinham de repente. Então a gente tomava banho escondida, de roupa e tudo, e depois ficava esperando a roupa secar no corpo, e o cabelo, no vento, e só depois disso era hora de voltar para casa sem correr o risco de um castigo. Quando chegamos finalmente ao lageiro onde eu costumava tomar banho antigamente, não consegui resistir e entrei na água de roupa e tudo, mais uma vez. Nem que eu tentasse, aqui, conseguiria descrever a sensação que tive ao mergulhar a cabeça naquela água fria – talvez pela última vez porque chegar até ali está verdadeiramente difícil – naquele dia. Também não conseguiria transcrever o que passou pela minha mente naquele instante. Disse para minha amiga que a vontade que eu tinha era de guardar para sempre a sensação daquele mergulho; de ter, sei lá, algum tipo de capacete que mantivesse aquilo para mim, para usar em alguma hora precisa, numa terça-feira trash qualquer da vida – uma daquelas que machuca mais do que o usual e arrasa a gente pelo resto da semana. Ali eu brinquei novamente com a alegria e o entusiasmo da criança que fui e só voltei à realidade quando minha sobrinha machucou-se de leve numa pedra. Aí veio o choro, trazendo de volta as responsabilidades, e o encanto se quebrou e o que era doce se acabou. A roupa já estava seca e nós começamos, então, a difícil caminhada de volta.

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Acho que foi o Saramago quem disse uma vez que o mito do paraíso perdido é o da infância, não há outro. Sei que nem toda infância é um paraíso, mas aqui é da minha que estou falando. Em uma crônica de um livro dele que eu estou lendo a conta-gotas, ele fala de um passeio ao rio de sua aldeia, que fez depois de adulto. Conto a do meu só agora porque também só nesta semana li a crônica dele e criei coragem para escrever a minha. “Este rio é qualquer coisa que me corre no sangue. A que estou preso desde sempre e para sempre”, ele diz. Na pequena crônica, fala de libélulas, também, mas não diz se eram azuis e verdes, como as minhas. Deitado em uma das margens, passa lindamente por uma série de reminiscências e depois desce até a beira do rio e mergulha suas mãos naquela água, que compara com o tempo. Diz que aquelas não são mais as suas águas porque as suas há muito que já correram para o mar mas que as mãos que vê naquele momento são as suas de 30 anos atrás. Quando desperta do ‘transe’ (com o final de um toque de sino, não com um choro de criança), sacode suas mãos “molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora”. E assim ele termina a crônica.

E foi por isto que eu me lembrei do Manoel de Barros e entendi finalmente a sensação boa que eu tive naquele dia, e que vai me acompanhar por aí, mesmo sem o capacete idealizado. Aquele meu mergulho foi, na verdade, um mergulho através de 40 anos. Um mergulho na hora que eu era quando o Riacho do Escorrega e cavava cacimbas com as mãos até a água ‘minar’, e podia aliviar a quentura do dia caminhando naquela areia fria. Na hora que eu era quando a roupa secando no meu corpo e esta era a solução para o maior problema que eu poderia ter que enfrentar. E na hora que eu era quando cabelo secando no vento, e só isto marcando, como um relógio fantástico, a hora das obrigações da vida.

E hoje eu também estou aqui quando infante, lembrando e pensando, como o Manoel de Barros, o Saramago e até como o Roberto Carlos, no tempo brincando ao redor dos meus caminhos naquele riacho, onde eu também coloquei meus pés (e cabeça e tudo o mais) um dia e – tenho certeza disso – nunca mais tirei.

7 comentários em “De quando eu respirava o vento e brincava com o tempo

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  1. Excelente mergulho retroativo em parte importante de nosso passado, Lysia!
    Desse Riacho tenho boas recordações: caçar passarinho, passear, tomar banho (nas enxurradas era uma aventura de risco), colher frutas nativas (atas, murta etc.) ou plantadas na roça próxima (melancia, por exemplo), além da mais exótica, que era jogar futebol descalço com (ou contra) moradores vizinhos em algumas manhãs de domingo, no período seco; acordávamos na segunda com a planta dos pés doendo das pisadas nas pedras e machucados do embate e das caneladas.
    Parafraseando Fernando Pessoa, “tudo valia (e vale) a pena, quando a alma não é pequena”…

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