Segunda-feira, 22 de outubro de 2018 (nunca tinha postado numa segunda e é só outubro, afinal)
“Os antigos construíram Valdrada à beira de um lago com casas repletas de varandas sobrepostas e com ruas suspensas sobre a água desembocando em parapeitos balaustrados. Deste modo, o viajante ao chegar depara-se com duas cidades: uma perpendicular sobre o lago e a outra refletida de cabeça para baixo. Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda, porque a cidade foi construída de tal modo que cada um de seus pontos fosse refletido por seu espelho, e a Valdrada na água contém não somente todas as acanaladuras e relevos das fachadas que se elevam sobre o lago mas também o interior das salas com os tetos e os pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários. Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus atos são simultaneamente aquele ato e sua imagem especular, que possui a especial dignidade das imagens, e essa consciência impede-os de abandonar-se ao acaso e ao esquecimento mesmo que por um único instante. Quando os amantes com os corpos nus rolam pele contra pele à procura da posição mais prazerosa ou quando os assassinos enfiam a faca nas veias escuras do pescoço e quanto mais a lâmina desliza entre os tendões mais o sangue escorre, o que importa não é tanto o acasalamento ou o degolamento, mas o acasalamento e o degolamento de suas imagens límpidas e frias no espelho. Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho. As duas cidades gêmeas não são iguais, porque nada do que acontece em Valdrada é simétrico: para cada face ou gesto, há uma face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar.”
(Italo Calvino, As Cidades Invisíveis)
Ano passado, na véspera do meu aniversário, terminei de ler As Cidades Invisíveis, do Italo Calvino. É um dos livros mais malucos que eu já li e acho que não conseguiria resenhá-lo, mesmo que quisesse mas, em linhas gerais, é como se fosse uma licença poética do Livro das Maravilhas – A Descrição do Mundo, através do qual o mercador Marco Polo narrou suas aventuras pelo Oriente. No livro de Italo Calvino os relatos que Marco Polo faz, como embaixador, para o imperador Kublai Khan sobre os lugares que visita são, na verdade, intrincadas metáforas para o comportamento humano, e as cidades – todas com nomes femininos – são divididas em categorias de acordo com o sentido que evocam. É um livro um pouco difícil, que dá meio que um nó na cabeça da gente de vez em quando, mas que vale muito, a leitura.
Este ano, no dia do meu aniversário, por pura coincidência e guiada pela visão de uma imagem em espelho, acabei me lembrando dele. Caminhando pela orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, a visão da cidade refletida na água me lembrou de Valdrada, a primeira da série A Cidade e os Olhos, de que o livro fala. Não andava com minha câmera fotográfica, companheira inseparável de viagens, porque era no Rio de Janeiro que eu estava passeando a pé, mas fiz o registro com a câmera do telefone, mesmo. Às vezes a melhor foto é só aquela que a gente quer fazer – e consegue!
Era um fim de tarde nublado, cinzento e escuro, e a água da lagoa repetiu isso em todos os seus tons de tristeza. Eu fiquei meio impressionada com aquela imagem e parei e me voltei várias vezes para olhar. Não era um quadro particularmente bonito, talvez até um pouco sinistro e com toda certeza, melancólico, mas ficou interessante no final.
Outubro nunca é um mês muito legal, para mim, e o dia do meu aniversário não é um dia exatamente alegre, também. Isso já vem de anos e não acho que tenha muito a ver com a idade, embora talvez piore com o tempo. Talvez a tarde escura refletida naquela água tenha sido, na verdade, apenas o reflexo do meu próprio estado de ânimo naquele dia. E eu estava meio adoentada, além do mais. Arquivei a imagem e a lembrança de Valdrada para reler depois o trecho, pois só me lembrava de sua idéia geral. Olhando a foto depois que reli, pude ver a genialidade simples daquilo. Em alguns pontos, a imagem refletida realmente mostra todos os detalhes. À medida que vão se distanciando do ponto focal, no entanto, os detalhes vão se desvanecendo, reduzindo-se a borrões às vezes. Alguns traços seriam dispensáveis, alguns aparecem no reflexo, mas não na imagem real, o inverso também ocorre e alguns são detalhes acrescidos, e nem sempre bonitos, do que se vê em cima… É, no fim, uma representação tão explícita da descrição do livro, e uma analogia tão óbvia sobre nós mesmos que chega quase a ser grosseira. Não dá para deixar de pensar no que conseguimos enxergar no nosso próprio espelho, nos pontos que preferimos focar e nos que preferimos não encarar, ocultar até de nós mesmos, na nossa própria imagem. O dia do nosso aniversário não é, no entanto e definitivamente, um dia bom para se refletir sobre isso, posso garantir, mas eu sigo as rotas que vão aparecendo e procuro não me queixar muito. No dizer de uma grande amiga que a vida afastou de mim e que até hoje me faz uma falta imensa, eu sempre preferi ver as coisas pelo lado bom, embora isso nem sempre correspondesse à realidade. Da adolescência até a vida adulta, ela nunca deixou passar uma oportunidade de me dizer uma verdade como esta mas, em minha defesa, tenho que dizer que eu nunca me deixei alienar totalmente. E na parte do que me diz respeito, aquela que o Brutus no Julio Cesar do Shakespeare, fala, do olho que a si mesmo só se enxerga pelo reflexo em outra coisa, sempre fui muito rigorosa. E de qualquer forma, penso que depois dos quarenta a maioria de nós já viveu tempo e vida suficientes para conseguir encarar seu próprio reflexo, e para, se não conseguir amar, pelo menos odiar com maturidade, a realidade invertida que ele mostra. Por esta época já é tempo de conseguir entender e aceitar o que de si resiste a si próprio no espelho, e conseguir conviver com isso. Trocando em miúdos, já é tempo de ser bem resolvido e saber seguir viagem. E ponto.
Voltando àquela estranha caminhada, já quase anoitecendo saímos da orla da Lagoa e continuamos caminhando, meu marido e eu, por aquelas ruas aparentemente tranquilas da Valdrada/Ipanema, até um pequeno e aconchegante restaurante alguns quarteirões mais adiante. Era uma pequena ilha de sossego, com música de qualidade, onde, sem muito esforço e ainda pela lei das rotas que se abrem, vi novamente uma imagem em espelho – a minha própria –, só que desta vez refletida no pequeno lago cheio de promessas que é uma taça de vinho bom. Contrapondo a lembrança cinzenta da imagem da Lagoa, pensei ali que a verdade, assim como no espelho, também no vinho às vezes pode estar. In vino veritas, reza a antiga lenda. E ponto continuando, para seguir viagem.
Uma excelente crônica! Às vezes, a data do nosso aniversário, antes de espelhar nossa imagem, mostra o reflexo longo do tempo às nossas costas. Mas, e daí? Tenhamos sempre um vinho ao nosso lado! E uma boa companhia! Isso espanta as sombras. Vida longa e próspera!!
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A boa companhia está implícita na promessa e na verdade do vinho. Vida longa e próspera!
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