Domingo, 19 de janeiro de 2020 (um dia inteiro de chuvinha fina e molhadeira)
“Sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera: digo.”
– João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: veredas.
Hoje não era mais de flores nem de saudade que eu iria falar mas a primeira mensagem que abri no zap pela manhã foi uma do meu tio que mora naquela fazenda da minha infância. Uma foto com um lírio do mato, desses que só nascem quando chegam as chuvas, que brotou no pátio em frente à casa. Respondi para ele que queria um daqueles. Depois acrescentei que o que eu queria mesmo era ir para lá. É inverno em terras nordestinas, finalmente, e inverno por aqui quer dizer tempo da chuva; tempo de legumes nascendo, de pasto novo e gado gordo e do mandacaru em flor…. É tempo de ser feliz no sertão.
Quando eu fazia o antigo primário, hoje ensino fundamental, o livro de português adotado pelo colégio, da primeira à quarta série, era o Passeio pelo Mundo de Comunicação e Expressão. Era um livro em formato horizontal, tipo paisagem, e cada novo capítulo dele começava com um pequeno texto que ia aumentando de complexidade a cada série seguinte. A partir daquele texto eram trabalhadas a leitura, a ortografia, a criatividade etc. Era o meu livro preferido e assim que o recebia, lia logo todos os textos do ano, pulando, claro, a parte da lição e dos exercícios. De todos esses pequenos textos, teve um que ficou na minha memória e até hoje eu me lembro ainda até da gravura que o acompanhava: um menino sorrindo, olhando a chuva pela janela de uma casinha simples de fazenda. O texto narrava, basicamente, a alegria do menino com a chegada das chuvas no sertão. Não me lembro quem era o autor porque na época eu não me ligava muito nisso, mas devo ter pensado que aquele texto poderia ter sido escrito pelo meu avô. Foi dele que eu me lembrei quando li aquilo pela primeira vez e uma das imagens mais nítidas da minha infância é a do seu semblante iluminado, com um sorriso aberto de orelha a orelha, atravessando o que eu achava na época ser um imenso corredor, numa tarde de chuva e trovoada, quando o dia virou noite de uma hora para outra.
Meu avô era um legítimo homem do sertão, e acima de tudo, do sertão nordestino. Sem nenhuma educação formal mas cheio daquelas lições que se aprende apenas na universidade da vida, sobretudo de uma vida difícil. Todos os anos, no dia 13 de dezembro ele fazia a experiência das pedras de sal e julgava prever, através dela, o inverno daquele ano. Quando cantava o bingo para nós, nas tardes calmas de inverno ou de verão, era através de anos de seca que ele falava os números (35, ano de seca ruim…). Quando ele ia situar uma história no tempo, às vezes começava com “Na seca de 63…” . Gostava também de falar de sua mãe distribuindo, aos sábados, na calçada de sua casa, farinha e cereais para os pobres. Contava histórias de retirantes e deixava a lágrima correr, sem nenhuma vergonha, ouvindo A Triste Partida, de Luiz Gonzaga. Muitas vezes, de madrugada, quando se ouvia o canto inconfundível das marrecas em voo, escutava ele falar para minha avó: “Ói! As marrecas estão voltando” – aquilo era prenúncio de chuva. E tinha a minha avó, também. Quando as chuvas demoravam a chegar, algumas vezes minha avó reclamava da falta do São José (padroeiro da chuva) entre os muitos santos de seu oratório. Ela brigava mas sabia que ele iria aparecer de novo, no final do inverno, quando o açude “sangrasse”. Para fazer vir a chuva, alguém ‘roubava’ o santo e jogava nesse açude, pegando-o de volta no sangradouro, depois. Estes e muitos outros são costumes e crenças que eu vejo se perderem em pouco tempo, entre as boas histórias do meu povo. Quem vai contar histórias como estas quando não houver mais nem avós assim de quem lembrar?
Quando estava escrevendo esta lembrança, fiquei curiosa para saber de onde teria vindo a palavra sertão e resolvi pesquisar (eu e meus vícios de estrada) a respeito. A definição mais interessante que eu vi foi a de uma engenheira química e gestora ambiental, Caroline Faria, em um artigo para o site Infoescola, no qual ela diz que a origem da palavra é controversa e que as duas versões mais prováveis seriam, uma, que seria “um vocábulo de origem angolana: “muceltão”, que quereria dizer “lugar interior”, “terra entre terras”, “local distante do mar”, que posteriormente teria virado “celtão”, depois “certão” até chegar ao atual “sertão” . E a outra, que é mais aceita, derivaria do termo latino “desertanu”, usado para regiões do interior, distantes do litoral (embora não necessariamente de clima árido), que depois teria virado “desertão” e finalmente, “sertão”. Conclui dizendo que, de uma forma ou de outra, esta palavra está intimamente relacionada com a história e a identidade cultural do nosso país, e que isto devia-se, principalmente, ao trabalho de escritores como Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Afonso Arinos.
Por aqui a gente fala que sai do mato mas o mato não sai da gente; que se carrega para sempre as folhas nos bolsos. Guimarães Rosa entendia disso, daí o preciso trecho dele que coloquei acima. E no fim, vindo de Angola ou de Roma, sertão é lugar interior, mesmo, muitas vezes empurrado para as entranhas da nossa mente, distante léguas de qualquer mar de água ou de concreto em que se viva. Lembrança vívida na memória dos políticos em época de eleição, mas isto é, obviamente, um simplório parêntese. E ao mesmo tempo tão à mão, que muitas vezes basta o som de um trovão distante ou a lembrança enviada de um lírio (ou de um mandacaru) em flor, para que ele venha à tona com toda a sua força. Naquele textinho do meu livro do primário, a narração fala de um som que para mim é único, inesquecível e inigualável, que é o “tamborilar da chuva no telhado”. Guardei esta descrição para a vida. Tentei achar, pelo Google, através de palavras-chaves, o texto na íntegra. Não tive sucesso mas, em compensação, achei uma pérola do Ziraldo que valeu a busca: um dos livros mais recentes dele, Os Meninos Morenos, que ainda não li todo mas que coube demais aqui para que eu me arriscasse a contextualizar um trecho. É um livro que conta suas memórias de infância, pontuadas pelos poemas, também sobre a infância, do poeta guatemalteco Humberto Ak’abal, com os quais ele muito se identificou. O trecho que li narra uma viagem dele, ainda muito criança, na frente da sela do cavalo de seu avô, debaixo de uma tempestade com raios e trovões. No texto ele fala que viajava abrigado sob a imensa capa gaúcha de seu avô e que ouvia, através dela, o “tamborilar da chuva”. O avô, ao menino curioso explicou aquilo com toda a sua paciência e excepcional sensibilidade: “É a chuva, meu filho, tocando sua música”. Diz ainda que sua voz parecia vir lá do céu. Ele conta que conviveu com aquele homem por quase cinquenta anos e até hoje a chuva tamborilando no telhado (fico pensando se ele também leu aquele texto) faz com que tenha uma “enorme sensação de aconchego e segurança” – Eu não sei se merecia isso, Ziraldo! Meu avô tinha também sua grande e grossa capa gaúcha para as viagens e labutas a cavalo nos dias de chuva. Tinha também uma imensa paciência com todos nós e me ensinou coisas que também nunca vou esquecer. Não tive a sorte de conviver com ele por cinquenta anos mas a minha primeira boneca, e depois a minha filha, ganharam o nome de sua mãe. Ele deixou para mim esse gosto bom de chuva, na memória, e até hoje, na minha casa, a música que toca mais bonito ainda é a da chuva tamborilando no telhado da varanda. E o cheiro de terra molhada ainda é o cheiro preferido da minha alma de gente do sertão.
E o P.S. de hoje é a letra da linda musiquinha Arapuá Fazendo Mel, do Sivuca. A melodia dela também é suave e bonita, e deixo aqui como sugestão para quem tiver curiosidade para ouvir. Vai como mais uma homenagem para o meu avô e para o avô do Ziraldo, também. E assim eu termino mais uma historinha das histórias que eu sei.
Quando é tempo do juá
Do uirapuru cantor
Mandacaru em flor
Quando algum carro de boi
Regressa de onde foi
Gemendo pra chegar
Arapuá fazendo mel
Riacho vem do céu
Pro pranto desaguar
Quando é festa do araçá
Dói de matar
Saudade do sertão
Leite no curral
Tronco de lenha no fogão
Um copo de aluá
Dá pra afogar um coração
Quando é tempo de lembrar
Dói de matar
Saudade do sertão
Texto muito legal! O cheiro de terra molhada e o barulho de uma chuva no telhado valem dois anos de terapia. E a Várzea, para você, vale muitos anos de terapia!
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Esse belo texto me deixou muito emocionado porque, como a Lysia, vivi intensamente na infância e adolescência as experiências do sertão, na Várzea, onde moravam nossos avós.
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Ótimo texto, que me emocionou e remeteu à infância e adolescência vividas, por ótimos períodos, na Várzea, Fazenda onde moraram nossos avós.
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