Segunda-feira, 2 de novembro de 2020 (dia de finados)

Esta era uma crônica para 31 de outubro, dia das bruxas, mas um acidente de percurso me fez perder totalmente o arquivo na hora de postar. Daí eu resolvi reescrever e postar no dia seguinte, Dia de Todos os Santos, mas a preguiça de começar tudo de novo foi maior. Hoje ela finalmente sai, no dia de finados. Bruxas ou santos – e eu acredito nos dois, dependendo do que se olha – acabaremos todos mortos, de um jeito ou de outro. Era, de qualquer forma, uma crônica de outubro, meu mês de aniversário, com o qual nunca convivo muito bem, embora este ano tenha sido mais light. Acho que depois da catarse dos 50 a coisa acabou melhorando. Que seja!
Eu cresci com os filmes e desenhos animados dos Estúdios Disney e meus filhos idem. Depois que eles evoluíram para as animações, o que já era bom ficou ainda melhor (minha opinião, sempre). Alguns deles me parecem verdadeiras obras de arte e aqui eu não tenho e não terei nunca intenção de analisá-los fora da beleza do que passam para mim. Não me interessa nem se desvirtuaram as histórias originais de onde vieram nem se estão empunhando alguma bandeira social do momento, por exemplo. As histórias originais eu conheço todas e elas são feias como a vida real pode ser, e penso que o que precisamos às vezes é fugir dela, mesmo. E, quanto às bandeiras, não dou trela para elas; defendo as minhas do meu jeito, não espero muita coisa dos seres humanos e a vida segue melhor assim — e esta é uma das minhas alienações pessoais.
Eu gosto também de sinos. De todos os tipos e de todos os sons que produzem. O dos chocalhos nos rebanhos de cabras e ovelhas num fim de tarde poeirento no sertão, são, inclusive, das lembranças mais antigas que a minha memória alcança. Os sinos das igrejas mexem muito com a minha memória, também. Foi de um deles que saiu esta crônica, inclusive.
Na minha cidade nós temos a nossa Notre Dame #sqn – A Igreja de São Benedito é um dos nossos pontos mais conhecidos. Foi ao redor dela que Teresina cresceu como cidade grande. Localizada bem no centro, numa das principais e na mais bonita das nossas avenidas, ela fica como se fosse no coração da cidade – pelo menos é este o lugar dela no meu. Não sou católica praticante e raramente assisto a uma missa mas aprecio muito histórias e panoramas. E a história dos panoramas! A São Benedito é rica nas duas coisas. Alguns anos atrás o teto desta igreja desabou e ela permaneceu fechada desde então, submetida a uma obra interminável de restauração, que nem campanhas de donativos, com abraços à igreja etc, conseguiram fazer terminar. A igreja permanecia em reforma até agora, mas, no início deste mês, num começo de semana extremamente difícil, passei pela frente da Igreja como em todos os dias da minha rotina de mais de vinte anos, (se contar os anos de colégio e faculdade a conta sobe para mais de trinta). Ouvi, neste dia, um som que nunca tinha escutado desde que comecei a passar por ali: o dobre de seus sinos. Abri os vidros do carro, espantada e maravilhada com aquilo. Vi pessoas entrando e percebi que a igreja tinha sido reaberta. Chegando no trabalho e comentando sobre isso, soube que era orientação do Bispo que os sinos da igreja tocassem para chamar para a missa, como tinha sido muito tempo atrás.
Tem dias que não não precisamos de muita coisa para nos maravilhar, não é assim? E os sinos têm alguma coisa de acalanto, eu acho. Talvez nem seja exatamente de acalanto, mas tem alguma coisa que mexe comigo. Naquele dia, pelo menos, me fez um bem enorme. Hoje eu passeio aqui por alguns dos meus momentos marcantes com eles.
O imenso sino do campanário de Notre Dame, pelo qual enfrentei uma fila quilométrica e uma subida exaustiva, não só uma, mas duas vezes, foi um que valeu a pena. Na primeira vez fui com meu marido pelo simples prazer de vermos um cenário de Victor Hugo e Paris, daquela perspectiva – a perspectiva das gárgulas. Na segunda, subi com minha filha para lembrar do Quasímodo da Disney num dos desenhos mais fortes de toda a sua história, eu creio. As razões dela eram as mesmas minhas e o sentimento deve ter sido parecido.
O chocalho das vacas na Suiça são, na verdade, enormes e pesados sinos, e o som inacreditavelmente cristalino que produzem soa como o de um instrumento musical. Este som, quebrando o silêncio de um deslumbrante vale no meio dos Alpes ainda retine nos meus ouvidos até hoje. E me faz pensar que, parafraseando a alienação pessoal do Tom Jobim, eu só acreditaria em socialismo se todo mundo pudesse ver e ouvir isso pelo menos uma vez na vida.
Na icônica casa de Pablo Neruda, em Isla Negra, existe um barco em terra firme (ele tinha medo do mar) onde ele entrava com seus amigos, todos borachos, para viver aquelas aventuras que só os bêbados sabem viver. Era com um sino, que ainda permanece lá, que ele convocava todos para estas viagens.
Os guisos da belíssima animação O Expresso Polar lembra aos que não têm quase nada, e também aos que têm tudo, que nunca devemos perder a capacidade de sonhar e nem de acreditar. Assisti já bem adulta e calejada e ainda assim me encantei com o filme como se fosse uma criança deslumbrada.
O famoso sermão de John Donne, no qual ele nos fala do motivo pelos quais os sinos dobram, permanece como uma referência perpétua no meu Caderninho Azul® desde que o li pela primeira vez.
Na entrada da minha casa, no lugar de uma campainha – nunca gostei delas – existe um sino, garimpado em algum site de bugigangas ainda na época da construção. Gosto do som que ele faz e me passa a impressão de que quem chega, vem com alegria e é de paz. E na minha casa, quem for de paz pode sempre entrar e bem-vindo seja!
Mas todas essas pequenas histórias desconexas são só para fazer a conexão com o princípio: A teoria da Disney. No desenho animado Robin Hood tem um personagem muito engraçadinho, que é o Frei Tuck. Na versão Disney ele é um sacerdote gordinho, meio trapalhão e muito bonzinho. Robin Hood não é nem de longe dos meus desenhos preferidos mas nele tem uma passagem que vale pelo filne todo. É uma parte que mostra uma chuva torrencial na aldeia, com lama para todo lado, e num momento em que a maior parte da população pobre está presa por não pagar os abusivos impostos. O clima é de tristeza e desolação total. Na sequência aparece Frei Tuck tocando o sino enquanto outra personagem varre a igreja e pergunta se ele acha mesmo que alguém vai aparecer para a missa com um tempo daqueles. Ele responde que sabe que não, mas que talvez o dobre dos sinos traga algum conforto ao coração das pessoas.
Não sei se o Bispo de Teresina assistiu ao Robin Hood, mas acho que ele entende o espírito da coisa, mesmo que não tenha visto. E eu entendo John Donne! Naquele dia o sino da São Benedito dobrou por mim. E que me perdoem a irrelevância do tema mas no mundo deveriam existir mais sinos tocando, eu penso. De verdade!
E o P.S. de hoje é uma poesia de um improvável poeta, porque ninguém o toma como tal. No original, em inglês, é um poema que para mim parece “musical’; é como música que eu o escuto. Para pensar em por quem os sinos dobram, sempre é bom ouvir Os Sinos, de Edgar Allan Poe.
OS SINOS
I
Escuta: nos trenós tilintam sinos
argentinos!
Ah! Que mundo de alegria o som cantante prenuncia!
Como tinem, lindo, lindo,
no ar da noite fria e bela!
Vão tinindo e o céu inteiro se constela,
florescente, refulgindo
com deleites cristalinos!
Dão ao Tempo uma cadência tão constante
como um rúnico descante,
com os tintinabulares, pequeninos sons, bem finos,
que nascendo vão dos sinos,
sim, dos sinos, sim, dos sinos,
saltitantes, bimbalhantes, dentre os sinos.
II
Escuta: em núpcias vão cantando os sinos,
áureos sinos!
Quantos mundos de ventura seu tanger nos prefigura!
No ar da noite, embalsamado,
como entoam seu enlevo abençoado!
Tons dourados, lentas notas
concordantes…
E tão límpido poema aí flutua
para as rolas, que o escutam, divagantes,
vendo a lua!
Volumoso, vem das celas retumbantes
todo um jorro de eufonia
que se amplia,
“O futuro é belo e bom!”
– clama o som,
que arrebata, como em êxtases divinos,
no balanço repicante que lá soa,
que tão bem, tão bem ecoa
na vibrante voz dos sinos, sinos, sinos,
carrilhões e sinos, sinos,
no rimado, consonante som dos sinos.
III
Escuta: em longo alarma bradam sinos,
brônzeos sinos!
Ah! Que história de agonia, turbulenta, se anuncia!
Treme a noite, com pavor,
quanto os ouve em seu bramido assustador.
Tanto é medo que, incapazes de falar,
se limitam a gritar,
em tons frouxos, desiguais,
clamorosos, apelando por clemência ao surdo fogo,
contendendo loucamente com o frenesí do fogo,
que se lança bem mais alto,
que em desejo audaz estua
de, no empenho resoluto de algum salto
(sim! agora ou nunca mais!),
alcançar a fronte pálida da lua!
Oh! os sinos, sinos, sinos!
De que lenda pavorosa, de alarmar,
falam tanto?
Clangorantes, ululantes, graves, finos,
quanto espanto vertem, quanto,
no fremente seio do ar!
E por eles bem a gente sabe – ouvindo
seu tinido,
seu bramido –
se o perigo é vindo ou findo.
Bem distintamente o ouvido reconhece
pela luta,
na disputa,
se o perigo morre ou cresce,
pela ampliante ou decrescente voz colérica dos sinos,
badalante voz dos sinos,
sim, dos sinos, sim, dos sinos,
do clamor e do clangor que vêm dos sinos!
IV
Escuta: dobram, lentamente, os sinos,
férreos sinos!
Ah! que mundo de pensares tão solenes põem nos ares!
Na silente noite fria,
quanto a alma se arrepia
à ameaça desse canto melancólico de espanto!
Pois em cada som saído
da garganta enferrujada
há um gemido!
E os sineiros (ah! essa gente
que, habitando o campanário
solitário,
vai dobrando, badalando a redobrada
voz monótona e envolvente…),
quão ufanos ficam eles, quando vão
tombar pedras sobre o humano coração!
Nem mulher nem homem são,
nem são feras: nada mais
do que seres fantasmais.
E é seu Rei quem assim tange,
é quem tange, e dobra, e tange.
E reboa
triunfal, do sino, a loa!
E seu peito de ventura se entumece
com os hinos funerários lá dos sinos;
dança, ulula, e bem parece
ter o Tempo num compasso tão constante
qual de rúnico descante,
pelos hinos lá dos sinos,
ah! dos sinos!
Leva o Tempo num compasso tão constante
como em rúnico descante,
pela pulsação dos sinos,
a plangente voz dos sinos,
pelo soluçar dos sinos!
Leva o Tempo em tal compasso, tão constante,
que a dobrar se sente, ovante,
bem feliz com esse rúnico descante,
com o reboar que vem dos sinos,
a gemente voz dos sinos,
o clamor que sai dos sinos,
a alucinação dos sinos,
o angustioso,
lamentoso, lutulento som dos sinos!
Belíssima crônica! Que os sinos continuem dobrando por nós, no contexto que nos agrada!
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