Os ventos que sopram e levam dezembros

Quinta-feira, 31 de dezembro de 2020 (primeira grande chuva no último dia do dezembro de um annus horribilis)

“Veio o vento e soprou o calendário”. 

lírio-do-vento, lírio-da-chuva – uma das minhas flores preferidas.

 Lygia Fagundes Telles dedicou seu livro A Disciplina do Amor, publicado pela primeira vez em 1998, ao único filho que teve, Goffredo Telles Neto. Sobre isso ela diz que assim que recebeu, pelo correio, o primeiro exemplar, telefonou ao filho dizendo que o livro era dedicado a ele. Fala da satisfação e da alegria dele, que considerou aquele o melhor dos seus livros, e das duas observações que ele fez para uma possível segunda edição: uma, que não usasse datas fictícias e sim, títulos, para os fragmentos do livro. Outra, que substituísse as iniciais das pessoas reais descritas, por seus verdadeiros nomes, para que os leitores soubessem quem eram elas. Esta história ela conta na nota de apresentação da segunda edição do livro, publicada dez anos atrás e depois da morte do filho. Na nota ela lamenta o fato de ele não estar mais aqui para ver que ela seguiu suas duas sugestões: deu “nomes aos bois” por extenso e, “Quanto às datas de alguns fragmentos, tirante o Dezesseis de Dezembro, que realmente é data do nascimento dele, veio o vento e soprou o calendário.”

Veio o vento e soprou o calendário. Ou talvez tenha sido um tufão ou um furacão que soprou forte o tempo por aqui, no plano terreno do planeta Terra. Chegamos finalmente ao dezembro mais difícil do ano mais difícil de todos os que vivi até hoje. Foi um dezembro totalmente atípico para mim, que sempre adorei essa época do ano. Quando criança, pela expectativa de longas férias – elas eram longas antigamente – de fazenda. Na adolescência não tinha mais férias de fazenda e foi quando eu comecei a gostar de armar a árvore de Natal e enfeitar a casa com minha mãe. Mais tarde, valeu para ver reproduzida nos meus filhos e sobrinhos a magia a qual eu sempre associei esse período. Nos últimos anos, depois da nossa família se espalhar pelo mundo, era a expectativa de todos nós juntos por algum tempo que movia o sentimento. Nesta época do ano a minha família, como milhões de outras pelo mundo afora, costuma se reunir toda, com muita festa e alegria. Costumava ser um período alegre e estressante ao mesmo tempo mas nesse ano, parece que até o stress faltou. Os preparativos das acomodações de cada um, a programação dos encontros, a eterna confusão de datas, quem chega quando etc, tudo isso foi feito meio no piloto automático…E o medo foi uma constante. Tivemos que resumir os encontros gerais a um só, e mesmo assim, cientes do riscos a que estávamos nos expondo e expondo os nossos mais velhos. Mas acho que nós todos precisávamos disso, de qualquer forma. Não faltaram sorrisos mas também sobraram lágrimas. Minha família não é mais inteira e nem nunca mais vai ser novamente. Não neste plano, pelo menos, e a lembrança disso estava em cada sorriso que a gente dava ou se esforçava para dar. Foi um Natal difícil!

Chico Buarque de Hollanda – o poeta – disse que uma vez, escutando as conversas de suas filhas enquanto brincavam de bonecas, notou que elas falavam assim: “agora eu era a rainha”, “agora eu era a mãe”… E por aí elas seguiam se inventando no seu mundo de faz de conta. Ele chamou este curioso tempo verbal de “passado onírico”, e foi  com base nesta inovação semântica/gramatical que compôs a música João e Maria. Por aqui, no tempo em que eu era criança, acho que apenas por uma variação regionalista, a gente falava “pra dizer que eu era a rainha, pra dizer que eu era a mãe…”, mas o sentido era o mesmo, com certeza. Agora talvez as crianças brinquem já no presente, ou talvez até no futuro, quem sabe, e só espero que elas não excluam nunca o onírico de suas fantasias, seja em que tempo verbal elas brinquem, mas este é só o meu vicioso parêntense.

Neste ano de mudanças, perdas e incertezas, ainda acho que devemos agradecer por ainda estarmos por aqui, e com saúde. Minha família, embora incompleta, ainda é enorme e pudemos nos ver quase todos, os que ficaram. Ao contrário do que muitos dizem, este não foi um ano perdido. Reiterando o que eu já disse por aqui, continuamos todos respirando e assim, vivendo, em cada unidade de tempo dele. De minha parte, pelo menos, fiz o que pude para vivê-lo da melhor maneira possível. Mas agora, no apagar das luzes de 2020, eu, que nunca dei bola para essa história de virada de ano, só queria terminar com ele podendo girar o relógio ao contrário e visitar a maior parte dos meus outros dezembros. Embarcar naquele passado onírico do Chico Buarque e poder dizer “pra dizer que eu tenho 9 anos e estou esperando meu avô vir me buscar pras férias. Pra dizer que eu tenho 15 anos e passo o Natal em Minas Gerais. Pra dizer que eu estou montando a árvore de Natal com minha filha pela primeira vez. Pra dizer que estamos novamente todos juntos como nunca mais estaremos… Que bom seria! Mas então eu me lembro que o tempo verbal agora é outro e prefiro não pensar num adjetivo para o presente ou futuro imediatos. Alguns não estão mais por aqui para viver e ver realizados os seus projetos e sonhos. Quanto aos sonhos, ainda acredito que temos que mantê-los acima de tudo. Quanto ao resto – e que pena! – veio o vento e soprou para longe todos os meus dezembros. 

Mas lá fora ainda está chovendo…

Um Feliz Ano Novo a todos, para não perder o costume!

2 comentários em “Os ventos que sopram e levam dezembros

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