“Viver como toda essa gente insiste em viver”: – não posso, não devo, não quero (meu lamento ao Boca Livre)

Domingo, 31 de janeiro de 2021(…)

Hoje faz 10 meses e 12 dias que a pandemia do novo coronavírus começou a fazer parte da minha vida. No dia 19 de março de 2020 a empresa privada onde trabalho e o serviço público no qual sou concursada suspenderam, simultaneamente e por decreto municipal, o atendimento geral e entraram em regime de quarentena, em princípio por 15 dias. Daí em diante foi uma longa espera e uma difícil adaptação. 

Na duração desse tempo passei por mais momentos tristes e difíceis do que na minha vida inteira até agora. Não por dificuldades e tristezas de cunho material, como grande parte da população mundial nesse ano de duras transformações. Falo aqui das dificuldades emocionais, mesmo. Dificuldade em lidar com os próprios sentimentos em relação às mudanças bruscas e com os sentimentos dos outros ao meu redor, também. Em relação aos meus, fora a tristeza por uma perda extremamente difícil, não tive outras maiores – há muito tempo aprendi a tirar o bom do ruim e esta filosofia de vida me mantém de pé até nas piores horas. E a lição de controle da minha própria ansiedade foi uma das mais dificeis que aprendi na escola da vida. Não digo que passei com louvor nessa prova, mas acredito que estou hoje um pouco acima da média. Já os sentimentos dos outros, e sobretudo no confinamento de uma quarentena, com estes sempre é mais difícil lidar. Mas, penso que são dificuldades superáveis quando temos uma conjuntura pela qual vale a pena lutar. 

Na semana passada, além das notícias gerais da pandemia, com número de novos casos, óbitos e média móvel ainda aumentando, uma outra, em particular (e nada relevante em relação ao futuro da humanidade, digo aqui de passagem), me deixou triste de verdade. O grupo musical Boca Livre sofreu um racha, terminando uma parceria de mais de 40 anos. 

Para quem não conhece, o Boca Livre é um grupo vocal carioca – para mim o melhor que o Brasil já teve – que desde os anos 70 se mantém vivo com lindas canções autorais e interpretações célebres de outros artistas, também. A afinação perfeita do quarteto sempre me passou a impressão de uma interação que só se consegue quando existe uma qualidade fundamental em um grupo, que é a afinidade. Eles cantavam em perfeita harmonia e davam a impressão de viver assim, também. Os quatro cantando, à capela, Ponta de Areia, do Milton Nascimento, para mim é uma das peças mais bonitas da nossa música popular. Nem mesmo o Milton conseguiu cantar com tanta emoção aquela saudade do que já foi e não é mais, como eles. A perfeita colocação de vozes na linda Desenredo, do Dori Caymmi, até hoje me emociona, e acho que para cada música deles que eu gosto, tenho uma história para contar. De algumas ainda me lembro e outras, do nada às vezes elas me vêm à lembrança.

Acho que a primeira música deles que ouvi foi Toada, da trilha sonora da novela Cabocla. “Sair por essa vida aventureira” é um bordão particular até hoje. Minha tia arrumando umas gavetas, cantarolando distraída esta música é uma das lembranças mais antigas. Foi dela que me lembrei quando assisti a uma apresentação ao vivo deles pela primeira vez 

Uma menina de voz linda cantando Desenredo, com uma amiga acompanhando num violão de respeito, num churrasco de república estudantil no interior de Minas, uma memória preciosa no meu caderninho azul. Aquela foi a primeira vez que escutei a música, pouco tempo antes de deixar aquela terra querida – “Eh, Minas, eh, Minas, é hora de partir, eu vou, vou me embora pra bem longe“… Naquele dia eu chorei. Muitos anos depois, já há muito tempo morando em “bem longe”, numa mesa de chopp e cantando esse mesmo trecho da música, fiz chorar também um mineiro desterrado, amigo de um irmão. 

Fazenda é uma viagem ao centro da minha infância de interior, lembrança marcante do tempo que a gente “respirava o vento até virar noite e os velhos falavam coisas dessa vida”. Quando eu ia embora meu coração também ficava lá. Passeia por lá até hoje, na verdade.

“Se a sanfona chora eu canto, canto de coração”. E eu cantei Folia com gosto uma vez, surpreendida pelo rádio numa manhã particularmente boa, indo para o trabalho às 7 da manhã no congestionamento da minha velha avenida de todo dia.

O Trenzinho do Caipira é um antigo e forte elo de ligação meu com um sobrinho que é autista. É nosso cumprimento particular e me fez chorar no dia em que cantei para ele numa UTI na qual ele estava internado, com metade do corpo paralisado por um AVC. O sorriso de reconhecimento apareceu pela metade, no lado bom, e é outra das lembranças que eu não quero esquecer na vida.

Ainda tem a linda e melancólica Diana, a alegre e otimista Quem Tem a Viola, a inspiradora Nossa Dança e tantas outras que sempre me acompanharam por onde andei, pintando com música as cores de alguns dos meus bons (e também de outros maus) momentos de estrada.

A afinidade é um fator decisivo em qualquer bom relacionamento: casamento, amizade, sociedades comerciais, agremiações partidárias (sic)… Sem essa qualidade pelo meio, nada disso funciona muito bem, diz a regra geral. A segunda qualidade essencial em qualquer um deles, para mim, é o respeito. Respeito pela maneira de ser, de agir e de pensar, principalmente. Isto se resume em aceitar as diferenças, o que, para a maior parte das pessoas, constitui-se num enorme esforço. E só fazemos este esforço quando temos algo que realmente o justifique. Com o Boca Livre tudo isso não funcionou mais, infelizmente. Depois de 40 anos veio a dissonância definitiva, na forma de uma séria divergência política, que já se arrastava há dois anos. No último mês o grupo recebeu um convite para uma parceria de trabalho no Amazonas e Zé Renato disse que só iria depois que todos recebessem a vacina contra a covid-19. Ao que se sabe, Maurício Maestro, apoiador convicto do atual presidente da República, teria dito que não tomaria a vacina, o que terminou numa grande discussão e na saída de Zé Renato e Lourenço Baeta do grupo, logo depois seguidos por Davi Tygel e pela acessora deles. Óbvio que este episódio parece ter sido só a gota d’água num copo que já deveria estar no limite do transbordo, mas ainda assim, foi o marco final de uma parceria que parecia envolver, além de tudo, uma grande amizade.

A afinidade seleciona os amigos, dizem por aí. Amizade só se mantém com respeito, repito aqui. Mas, não sigo à risca a regra geral. Permito-me isolar pelo menos as divergências políticas das minhas amizades e tenho me saído razoavelmente bem nisso, apesar dos pesares de hoje em dia. Aceito que diferenças devem ser respeitadas mas também penso que o respeito deve ser estendido a outras coisas também. Li a entrevista que o Maurício deu ao Estadão e não vi nada diferente do que tenho visto nos últimos tempos nesse nosso país polarizado. Nela ele diz que quer ter o direito de decidir sobre ele mesmo. “Ele diz não ser contra ninguém que queira tomar a vacina anticoronavírus. “Mas quero poder decidir sobre mim mesmo, ter o direito de escolher.” Sobre o argumento que se tem colocado acima de questões políticas – o do número de mortes chegando aos 215 mil nesta quinta-feira –, Maestro diz: “Se pesquisar bem, verá que os números relativos de mortes no Brasil são menores do que em outros países”. Ainda que sejam, não seriam assustadores? “Eu também me assusto ao andar de ônibus e fazer tantas outras coisas nesse País… Essa é uma questão que está sendo radicalizada para atingir o governo (Bolsonaro)… Muitas pessoas morreram porque não saíram de casa, não tomaram sol, não levaram suas vidas normalmente. Só ficaram em casa e morreram. O que aconteceu com elas? Eu saí, fui fazer show em Belém, tomei sol e estou aqui, vida que segue.”

Falou, também, ao Estadão, Zé Renato. Disse que a postura do amigo e parceiro começou a incomodá-lo dois anos atrás, numa polêmica envolvendo Chico Buarque e seu alinhamento ao PT. Questionou, na época, se a partir de então o grupo não cantaria mais as músicas do Chico. Sobre a separação: “Jamais imaginei que uma pessoa que conheço há 40 anos poderia se alinhar com essas ideias. Um grupo com a liberdade no nome, que fez dois discos independentes em um período difícil para firmar uma posição de independência”(…)

Não é minha intenção fazer nenhum juízo político, muito menos discutir política nesse meu pequeno espaço. Política é algo que carrega, no meu universo particular, o mais profundo dos meus desprezos. Falo aqui do cotidiano, do que eu gosto e do que me interessa. E eu gosto de música, o Boca Livre fez parte da minha vida quase toda e isto me interessa. Quanto ao cotidiano, que difícil ele está! As palavras ganharam nuances que eu tenho dificuldade em acompanhar. Liberdade era uma palavra tão simples de se explicar e entender e agora, no entanto… O significado de direito era tão universal, mas hoje é o meu contra o seu e nenhum por nós todos… (e olha que eu nem estou pensando em Comunismo…) A morte está banalizada e relativizada e,– fazer o quê? –, vida que segue. E eu aqui, só me lembrando dos versos tristes da canção: “A cera da vela queimando/ O homem fazendo o seu preço/ A morte que a vida anda armando/ A vida que a morte anda tendo”… Mas este é só o meu parêntese de estimação.

Nestes 10 meses de pandemia, fora para o trabalho, saí muito pouco, peguei muito sol e segui com a vida. Não fiz nenhum show mas assiti a vários e de vários tipos, e perdi, para a Covid-19, alguém muito importante e querido, em Belém. Apesar dos pesares ainda tento fugir à regra geral e salvar algumas amizades que acho que valem ser salvas, mesmo com as dissonâncias. Tento isolar o restante para ver o que sobra. E na semana passada tomei a primeira dose da vacina. Conservo viva a esperança. E vou seguindo com fé.

E do Boca Livre, só posso dizer – Que pena, né?

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