Azul da cor da minha pura memória de algum lugar

Quarta-feira, 31 de março de 2021 (sem flores nem generais)

“Já aí Miguel cobrava também interesse por nhô Gaspar, nele encontrava a maneira módica do povo dos Gerais, de sua própria gente, sensível ao mudo compasso, ao nível de alma daquelas regiões de lugar e de viver. Contra o sertão, Miguel tinha sua pessôa, sua infância, que ele, de anos, pelejava por deslembrar, num esforço que era a mesma saudade, em sua forma mais eficaz. Mas o grande sertão dos Gerais povoava-o, nele estava, em seu amor, carnal marcado. Então, em fim de vencer e ganhar o passado no presente, o que ele se socorrera de aprender era a precisão de transformar o poder do sertão — em seu coração mesmo e entendimento. Assim na também existência real dele sertão, que obedece ao que se quer. — “Tomar para mim o que é meu…” Como o que seja, dia adiante, um rio, um mato? Mil, uma coisa, movida, diversa(…).                                                    – Trecho de Buriti, de Guimarães Rosa, do livro Noites do Sertão.

   

E nesta semana eu passei por um caminhão da White Martins, provavelmente indo abastecer, com “ar medicinal”, algum hospital da cidade.

Tempo de chuva e de saudade boa, por aqui, quando o ribombar de um trovão pode mudar o compasso do coração. O céu se abre para derramar um riacho, como naquela musiquinha linda, e a terra, parece que verdeja e viceja. E floresce. Saudade boa, que dói de boa…

E foi nesse clima que nessa semana eu também topei, quase sem querer, com o conto Buriti, do Guimarães Rosa. Fazia tempo que eu não lia nada tão bom e reconfortante. O sertão brasileiro é este vasto território que, regionalismos à parte, é o mesmo em todo lugar onde ele há. E eu já tinha quase me esquecido do gosto que tem um livro de Guimarães Rosa: Passear pela fazenda Buriti Bom foi como andar dentro da dos meus avós, de tão familiar e bom! A casa grande, o quarto da varanda, as “mulheres-da-cozinha”, a lida de fazendeiro, a prosa (e os versos que nela estavam inseridos e a gente nem percebia) dos peões e da gente do lugar, as histórias, as crendices e o jeito de conversar daquele povo humilde… Foi como se o tempo voltasse para um lugar onde nem ele parecia existir. Das lembranças subiu até o cheiro da chuva.

A casa azul, que minha avó mandava pintar todos os anos antes da chegada da família toda nas férias. Às vezes eu chegava primeiro e ainda pegava a reforma terminando. A tinta barata, daquelas em pó, diluídas e misturadas com cal: “não peguem no pó de cal, que a cal viva ‘come’ os dedos da gente”– ainda me fala agora mesmo uma voz sem rosto, saída de algum recesso do tempo. Lembro de ficar por ali, no entorno do pedreiro/pintor, sempre de olho em alguma sobra de bregueço, que mais tarde poderia virar algum brinquedo rústico. Porque lá nós aprendemos a fazer alguns: um apito cortado e modelado a partir da etiqueta de metal dos rolos de arame farpado; carrapetas feitas com um palito e com as tampinhas de borracha dos frascos de vacina do gado (tinha que ter cuidado no corte porque o giro dela tinha que ser perfeito, não podia “bambear”); as preciosas e cobiçadas latas de óleo Dureino, que às vezes viravam um trator ou um caminhãozinho, com pneus de restos de sandálias havaianas, garimpados no monturo que havia depois da cerca do quintal; bonecas horrorosas, feitas de retalhos de pano surrupiados da máquina de costura de minha avó ou de espigas de milho verde novo, ainda com “cabelo’… Coisas que a gente via e tentava aprender com as crianças de lá, e a facilidade com que isso me vem agora me impressiona.

O azul da frente da casa, repetido sem variações ano após ano, era aquele azul desbotado, fugidio, que mesmo novo já parecia velho. ‘Quase inexistente, azul que não há”, como cantou o Caetano – e isso explica muito. Quando a pintura finalmente acabava, minha avó mandava lavar a casa. O cheiro de tinta fresca acabava misturado com o cheiro de terra molhada que subia daquele piso de ladrilhos de barro. A sensação de frescor que ficava, depois que a água secava, parecia que penetrava na alma da gente…Dava aquela impressão de que a vida também era fresca e boa. E até era…

O corredor, que hoje eu acho pequeno mas que antes parecia tão longo, com  selas e arreios pendurados em tornos, de cada lado, nas paredes, terminando na sala que era o centro da casa e para onde todos os cômodos convergiam. Todos os quartos comunicavam-se por alguma porta interna e assim continuam até hoje. Saindo da sala tinha o “quarto do fogão”, um cubículo com o único fogão a gás da casa, que minha avó só usava ocasionalmente, e outro corredor, pequeno e estreito, que levava à cozinha, de fato. Esta, por sua vez abria-se para os quartos do paiol de farinha e outro de ferragens, para a casa do forno, nos fundos da casa, e para um pátio interno, que abrigava um grande viveiro de pássaros e dois pés de cidra e outro de laranja-da-terra. A cidra virava uma compota muito doce mas o gosto do chá de casca de laranja-da-terra, que meu avô tomava como remédio, amargava até o pensamento. Na cozinha, um fogão a lenha que ocupava duas paredes, e varais no teto para pendurar linguiça e carnes retalhadas, além das cascas de laranja que as moças jogavam para saber se iriam se casar – teve por lá uma que todo dia, ao meio-dia, corria para o quintal e rezava ajoelhada para Santo Antônio, pedindo um marido.

 A casa do forno, último cômodo da casa, era como uma grande varanda coberta onde havia, obviamente, um grande forno de alvenaria, usado para as farinhadas de mandioca. Era lá também que ficavam as trempes, conjunto de três pedras grandes arrumadas num arranjo triangular, entre as quais se colocava carvão ou lenha. Sobre elas eram postos grandes panelas de ferro e tachos de cobre onde eram mexidos doces, queijos e manteigas. Ainda alcancei, também, colmeias de abelhas em troncos de carnaúba escavados, pendurados no teto daquele lugar. No quintal do entorno, ou no terreiro, como falavam por lá, de um lado havia dois galinheiros onde as pobres galinhas da vovó eram confinadas e engordadas. Ao fundo, um grande jirau onde a farinha e a tapioca eram postas para secar, e no outro lado, um chiqueiro de porcos, também engordados durante todo o ano para virar linguiça e latas de toucinho derretido em gordura. Para além do quintal ficava o monturo onde era jogado todo o lixo da casa, que naquele tempo era quase todo orgânico, felizmente. Depois dele, matas e roças que naquele tempo eu achava que não tinham fim. 

Em cada canto da parte da frente da casa, um cômodo com função específica: de um lado, pegado ao quarto de meus avós, o “quarto da esquina”, território dos segredos de minha avó. Lá eram guardados, além de outras coisas, os “madureiros” de ata e de banana, as garrafas de refrigerante (quando havia, e era raro) e de bebidas, as rapaduras e as latas de biscoito que eram distribuídos aos poucos, para nós. Havia também, neste cômodo, outro grande paiol de tapioca ou de farinha, não me lembro ao certo. Na outra extremidade da casa, o “quarto da varanda”, que servia de armazém de grãos e também de depósito de ferramentas, domínio de meu avô e de meu tio. Os dormitórios também tinham nome: o quarto da minha avó levava seu nome: quarto de d. Arabela ou, para mim, quarto da Vovó. Dele, além da porta para o quarto da esquina, saía uma porta que dava para o corredor e outra que se comunicava com o “quarto do meio”, um quarto estranho e sem janelas, que se abria também para a sala e para o pequeno quarto (meu preferido até hoje) que levava o nome de minha tia mais nova. Ao lado deste último ficava o quarto da cozinheira, que também tinha seu nome: quarto de Laura. Separados apenas por uma porta e por uma meia parede, eram comuns as divertidas conversas e as risadas entre os que dormiam nestes dois quartos, à noite. Dessa teia intrincada de cômodos só escapava o grande quarto de minha mãe, que ficava do outro lado da casa e tinha saída para a sala. O privilégio era por ser a mais velha e ter a família maior, eu acho, mas eu mesma nunca dormi nele, nem quando ela estava lá. Deste quarto também saía uma porta para outro, que, no entanto, poucas vezes foi usado como dormitório. Era um quarto meio sombrio e eu não gostava dele. A sala era o centro da casa e onde ficava a antiga geladeira a querosene, que foi depois substituída por uma a gás, num tempo anterior à energia elétrica rural – Uma geladeira na sala onde se comia, recebia-se visitas e se rezava o terço à noite… quem não viu isso nunca vai conseguir imaginar.

Na frente da casa, um pátio de lages e terra batida, abaixo da calçada alta. Passava quase o dia inteiro sob a sombra oportuna das duas figueiras-bravas que meu avô plantou ainda durante a construção da casa, em 1940, presentes de uma comadre não-sei-quem, de algum lugar que também não me lembro mais o nome. Ele gostava de lembrar essa história e eu gostava de contar, baseada naquela data, e ano após ano, a idade daquelas figueiras. A parte exposta das enormes raízes daquelas árvores formavam cidadelas naturais para reinos e histórias que eu criei muitas vezes, também. E, sobre histórias, era naquela calçada alta, onde o povo se sentava à noite para ouvir a Voz do Brasil e conversar, que eu ouvia muitas delas, também. E aquele céu, o que era aquilo? Estrelas que “desciam” até a linha do horizonte… Todo dia tinha uma competição para ver quem enxergava a primeira que aparecia no céu. Quem a via podia fazer um pedido que se realizaria. Se fosse para fazer um pedido hoje, acho que o meu desejo seria ver aquele mesmo céu novamente, da maneira como o via naquele tempo, sem dores nem dissabores. Logo após o pôr do sol, era hora de procurar os satélites, pequenas estrelas que “andavam” e que conseguíamos ver a olho nu. As estrelas cadentes eram um prêmio à parte e também mereciam um pedido. Aquele céu era a tradução exata da expressão ‘manto de estrelas’, e muitas vezes eu olhei para elas até a barra do dia clarear. Nunca vai haver um céu como aquele… Não para mim, pelo menos.

Num dos lados da casa ficava o galpão de máquinas, onde era guardado o maquinário agrícola e eram estacionados os tratores. No outro lado da casa, e muito mais perto do que minha avó desejaria, como ela nunca deixou de falar, o curral das vacas, de onde saía o leite para o consumo e algum para a venda na cidade. De lá vinham também os enxames de moscas que infernizavam a nossa vida por ali, também, e este era o motivo do grande desgosto de minha avó. Os vaqueiros acordavam antes do sol, e meu avô, com eles por lá. Ali eu tomava meu primeiro copo de leite do dia. Mugido e espumando – impensável hoje em dia!

As mulheres-da-cozinha da Várzea, que tanto delas tinha lá! Vinham de toda a vizinhança e cada uma tinha uma função: uma fazia coalhada, outra batia a manteiga e o queijo, outra mexia o tacho de doce… Assadeiras de biscoitos de nata, petas e bolos salgados, bom-bocados da Vovó, saindo do forno em dias específicos para isso. Aquele converseiro sem fim, as fofocas picantes e as ‘gaitadas’ que se ouviam de longe. Ainda hoje, quando entro naquela cozinha vazia à noite e sinto o cheiro que ela nunca deixou de ter, consigo escutar essas vozes em pensamento. É incrível o que os sentidos aguçados, as lembranças e a saudade conseguem fazer com a nossa imaginação às vezes. Ou vai ver as vozes ficam realmente gravadas nas paredes, no piso e no teto de um lugar, sei lá…

Tinha o dia de matar uma rês, que para mim era o dia de assar um pedaço de carne no espeto de ferro que ficava na cozinha. A carne era quase toda retalhada para virar carne seca, mas parte dela era distribuída aos ajudantes do dia e outra virava um gorduroso cozidão no almoço. E tinha o dia de fazer linguiça, também, meu preferido de todos. Era quando minha avó mandava matar o enorme porco que ela engordava durante todo o ano para derreter o toucinho e guardar aquela gordura em grandes latas de querosene Jacaré, e com a carne fazer a linguiça que ela distribuiria para os filhos levarem quando fossem embora. Para a linguiça a carne era toda cortada e temperada numa grande gamela de madeira, e a maioria das mulheres (eu no meio delas) sentava-se ao redor dessa gamela, numa grande mesa improvisada, enchendo tripas secas com aquela carne que de tão aromática, dava vontade de comer crua. Depois de cheias, as linguiças eram furadas com espinhos de mandacaru e penduradas nos varais da cozinha até escorrer toda a salmoura. Só depois disso poderíamos comer delas. 

E tinha as ‘desmanchas’ de mandioca, as famosas farinhadas, de onde saía a tapioca e a farinha para consumo e para venda, também. O forno velho, nos fundos da casa, o povo todo das redondezas colhendo, cortando, lavando, ralando, torrando a mandioca, numa linha de produção descontraída, barulhenta e cheia de conversas, risadas e muitas, muitas histórias.

Meu avô plantava de tudo um pouco, por lá, e ao longo do ano, com cada cultura no seu tempo, empregava muita gente nas lavouras. Trabalhadores diaristas, que chegavam bem cedo para o “quebra-jejum”, o café da manhã que era servido a eles antes do nosso. Assim também era o almoço (quando a roça era distante, meu avô mandava alguém entregar a comida em marmitas ou pratos de alumínio, amarrados com panos de prato) e o jantar. O fogo daquele fogão nunca se apagava antes das seis da tarde. Como também não cessava a algazarra, nem na mesa e nem na cozinha. Que tempo, aquele!

Se fosse falar de tudo, escreveria durante um dia inteiro. Faltou falar muito sobre as paisagens e recantos. Faltou contar do som do vento nas folhas das figueiras, da estrada nas noites de lua, da chuva chegando do nascente, que se escutava antes de se sentir os pingos no rosto, do barulho dela no telhado e dos respingos das goteiras… e de todos os outros cheiros, também… As lembranças todas, se eu conseguisse reuní-las, encheriam um livro. Como não tenho intenção de escrever nenhum, falar disso nessa época do ano, quando a saudade aperta mais do que o normal, traz de volta a sensação boa de viver tudo aquilo outra vez. E por aqui eu sempre posso ir contando de pouquinho…

O extenso conto Buriti foi um presente bom, principalmente nessa época difícil, em que tenho procurado muito por coisas boas. E assim como as desventuras às vezes vêm em série (e as pandemias reerguem-se em trágicas segundas ondas), também em série podem nos chegar as venturas. Nesta semana, visitando minha mãe eu ganhei outro desses presentes bons. Arrumando uns armários antigos ela encontrou uma carta que recebeu de meu avô quando ainda morávamos em Minas, e me passou a carta para ler. É uma carta longa, de três páginas, resposta a uma que minha mãe tinha enviado para eles. Escrita naqueles antigos blocos de carta, começa com ele abençoando minha mãe e falando da saudade que sentia dela, e também da pena que tinha de não poder visitá-la (“quando me lembro da distância e do frio, esmoreço”). Diz que na idade em que ele e minha avó estão, o melhor que fazem é ficar quietos, mesmo. Fala um pouco de cada um dos filhos e conta dos prejuízos da enchente que sucedeu os três últimos anos de seca na região. Conta da satisfação de minha avó, agradecendo ao Menino Jesus de Praga e aos filhos pelo presente da geladeira nova, depois de a antiga pegar fogo (“coisa boa é filho que não se esquece dos pais”). Termina a carta perguntando nominalmente por todos nós e mandando recomendações às duas secretárias que nos acompanharam naquela aventura mineira. Manda para nós as lembranças de todos da casa, também.

Meu avô talvez tenha concluído apenas o antigo primário, e, fora as anotações de seu caderno de contas, nunca tinha lido nada escrito por ele. Mas toda a sua maneira simples e direta de falar de tudo eu pude ver reproduzida naquela narrativa escrita com caligrafia antiga e elegante. Sua fala mansa, a voz calma e pausada, que nos sonhos eu não consigo mais escutar, pude ouvir com nitidez durante a leitura. Na carta, que eu li como quem lê o mapa de um tesouro perdido, percebe-se nitidamente todo o sentimento que ele experimentou ao escrevê-la. E naquele português sofrível ele oferece um olhar sobre toda a sua essência de homem simples do campo, sua humildade, seus valores autênticos e antigos e seus bem-quereres maiores. Em essência também não deveu nada a Guimarães Rosa. E tenho certeza de que os dois entenderiam o que eu quero dizer com isso porque eles se entendiam sem nem se conhecer. Meu avô estava no conto dele porque o sertão, como eu disse antes, é um só, assim como as suas gentes. Do Buriti Bom, na fronteira dos Gerais de Minas, à Várzea, nos confins do meu árido Piauí. 

Mas, como alguém disse no Buriti, “Tomar da lua tira o sono, e fundo cansa o abusar de nostalgias”. E esta crônica já ultrapassou o limite do razoável, por isso é hora de terminar. Foi mais uma crônica de saudade, e a saudade, se tiver uma cor, para mim será sempre azul. Se tivesse fotos daquele tempo, encheria esta crônica dos tons dessas saudades: O azul esmaecido de uma tinta de parede barata, o azul de um céu de julho sem nuvens, o azul da chama de uma velha geladeira a querosene, o azul das asas do azulão… o azul das coisas do sertão, enfim. 

No final de Buriti, uma das personagens, ao se preparar para deixar a fazenda, conforma-se com isso com o pensamento de que “levaria no coração a paz resumida do Buriti Bom”. O meu coração também carrega um resumo de paz desse tipo. E sobre ar medicinal, o que era mesmo que eu ia dizer? Nem sei…

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