Sexta-feira, 30 de abril de 2021 (fechando um abril despedaçado)

Abril foi um mês bem comprido por aqui. Disseram que no Brasil este seria o abril mais triste das nossas vidas até hoje, não importando que idade tivéssemos. Particularmente, no meu caso o abril mais triste foi o do ano passado, quando tive a perda maior da minha vida mas, olhando por uma lente grande angular, que amplia o meu quintal para fora dele mesmo, entendo o que quiseram dizer. Para todo lado que eu me virei neste último mês, só vi sinais de luto. E nem precisei de números oficiais para enxergar isso. A morte deixou um rastro bem vivo, por aqui, e assim segue ainda. No dia em que o país superou a triste marca dos 400.000 mortos pela Covid-19, fez também um ano que eu perdi meu tio/irmão/amigo, morto no início da pandemia, quando a China ainda era a única culpada pelo destroço de então. Ele foi 1 entre 400.000 e tanto ele como os demais 399.999 (se os números fossem exatos) mereciam mais do que serem lembrados apenas como uma estatística que nem reflexões traz mais a alguns, eu penso e fecho parênteses. Mas, segue a vida, como não pode deixar de ser. Nós tivemos uma missa alegre e bonita para lembrar a data. Foi celebrada em Belém, onde meu tio morava, direto do hospital que ele comandava, e foi transmitida pelo YouTube, no canal do hospital. Pela insegurança do momento, resolvi não viajar para lá, como era minha intenção antes. Mas enviei, em nome de toda a minha família, uma mensagem de agradecimento aos amigos que sempre estiveram conosco e com ele. Na mensagem eu propus a todos, partindo de um simplório pensamento de uma personagem de livro, que buscássemos manter em nós mesmos a alegria, porque seria ela a essência de Deus em nós e assim, nossa premissa para a vida. La joie de vivre, para dizer bonito, aqui. Passado um ano, já dá para sentir ela voltando aos poucos… Mesmo agora, nesta hora em que, no dizer do meu marido, o Criador parece estar em dúvida sobre acabar ou ou não com a sua criação. E nenhuma alegria é maior do que a que conseguimos sentir depois de uma grande tristeza, como eu já pude comprovar por mim mesma. Como nos versos bonitos da música, quem não se lembra? “e pela dor eu descobri, o poder da alegria…” – E é daqui que eu corto caminho pro Belchior, para ajudar a voltar à leveza (ou quase isso). A conexão? Sei lá, talvez a morte ou, quem sabe, até a vida…
Hoje faz quatro anos da morte física do Belchior. No dia em que ele morreu eu estava no extremo norte da Dinamarca, voltando do lugar onde o Mar do Norte encontra-se com o Mar Báltico numa curiosa ‘pororoca’ de contexto escandinavo. Era uma praia linda, de um tipo de beleza de praia que eu não conhecia e eu estava de férias, sem internet nem nenhum interesse por ela num lugar daqueles. Mas me lembro que meu irmão mais novo, que na época morava por lá e precisava estar conectado à rede, virou-se para mim e para meu marido dizendo: “Ih, uma notícia aqui que vocês não vão gostar: Belchior morreu!”. Estávamos na estrada e a viagem para a cidade onde dormiríamos foi curta. Assim que chegamos, passei direto para o quarto e escrevi uma despedida para ele, que postei no Facebook, como era meu costume com coisas assim. E chorei enquanto fazia isso, não vou nem mentir. Por tudo que vivemos de diferente e incrível naquele dia que terminou com uma notícia triste, a data ficou naturalmente marcada no meu Caderninho Azul®. Todos os anos eu me lembro dela. E do Belchior… Bom, precisaria de muito tempo para escrever a minha história de amor por ele, mas uma vez, uns dois ou três anos atrás, numa folga de horário de almoço (que hoje eu nem tenho mais), de um fôlego só eu escrevi a crônica que reciclo agora, postando aqui no blog, como lembrança e homenagem. O mundo, que piorou um pouco mais nos últimos três anos mas não mudou sua essência nem ao longo dos séculos, tampouco mudou, neste período, ao ponto de tornar obsoleto este texto. Se fosse fazer uma dedicatória pomposa, ofereceria a crônica a este grande cantor e compositor, exímio entendedor das sabenças naturais dos bípedes que chamam a si próprios de humanos, doutor nas filosofias da vida real, co-entendedor dos meus sentidos e sofreres nordestinos, companheiro das minhas sendas de poesias e searas de poetas e de eterna e mui saudosa memória: meu mestre, Belchior.
E aqui vai ela.
“Faz tempo que ninguém canta uma canção falando fácil, claro-fácil, claramente / Das coisas que acontecem todo dia, em nosso tempo e lugar./ Você fica perdendo o sono, pretendendo ser o dono das palavras, ser a voz do que é novo; / e a vida, sempre nova, acontecendo de surpresa, caindo como pedra sobre o povo”
Desde a semana passada que eu tenho sentido saudade do Belchior. Não foi aniversário dele, ninguém falou nele nem ouvi nada dele no rádio; é só aquela saudade que vem do nada, aquela vontade de ouvir alguém querido que não está por perto. E ele era exatamente isso para mim: alguém querido e conhecido, como se fosse de casa, mesmo. Foi o único artista que me fez chorar, sentir tristeza de verdade, com a sua morte, só para abrir e fechar parênteses.
Belchior sempre fez parte da minha vida. Não me lembro de nenhuma fase dela em que ele não tenha sido uma referência. A maneira particular que ele tinha de ver as coisas foi um óculos que eu usei muitas vezes e ainda uso muito até hoje em dia. Às vezes escutar suas músicas (ainda) é como conversar a toa com um amigo, numa mesa de bar. Este, aliás, foi um desejo que eu tive várias vezes: encontrar o Belchior, tomar uma cerveja gelada e bater um papo com ele. Na minha presunção, sempre achei que assunto não iria faltar. Até anotei mentalmente – e em casa já brincamos muito sobre isso – algumas coisas das músicas dele que eu perguntaria de onde saíram. Amor, política, sonhos, desilusões… ninguém cantava isso como ele. Sempre vou achar incrível a maneira como ele sintetizava as coisas, como ele conseguia expor cruamente a realidade do cotidiano e das pessoas com toda aquela poesia, aquela harmonia e aquela melodia quase sempre pungente… Aquele jeito peculiar – e cruel, para as almas mais sensíveis – que ele tinha de dizer: bote seus pés no chão que é o que você pode fazer de melhor por você e pelo mundo – “Aprendam o delírio com coisas reais / Tudo muda! E com toda razão / Viver a divina comédia humana, onde nada é eterno / Não se preocupe, meu amigo,(…) ao vivo é muito pior / Fique você com a mente positiva, que eu quero é a voz ativa… “ e tantos outros versos como estes… Isto não é só música de verdade, é mais! É conselho de amigo, embora nem sempre seguido, devo dizer.
A família nós tentamos criar segundo nossos valores e gostos, e os amigos, estes é a afinidade quem seleciona. Por isso, durante todo o tempo em que ele sumiu, o micronúcleo formado pela minha família e também o dos amigos mais chegados sempre torceu pela sua volta. Nas rodas de conversa boa, dificilmente alguém deixava de dizer algo como “e o Belchior, heim, por onde andará?” ou “ah, o Belchior aqui, numa hora dessas…”, ou ainda um “como bem disse o Belchior”. Com sua música, sob especulação ou como lembrança, o fato é que ele é presença constante nestas rodas até hoje.
Naquela conversa hipotética e até presumida, fico imaginando a gente conversando sobre literatura, poesia, pessoas… Sobre “O” Pessoa, Beatles, Nordeste, música, rock, Brasil, juventude… Sem tietagem, só conversa boa, mesmo. Era um sonho bom! Lembrando disso agora, tento imaginar o que ele diria do mundo de hoje, das pessoas, da situação atual do nosso país (diga lá, tristes trópicos!)… Ele, que falou tanto disso no passado… Aí então eu me lembro que é com o Belchior que estaria falando, corto logo as reticências (ele não era delas, afinal) e penso que, embora profetizasse o novo, em essência ele não diria nada que já não tivesse dito antes em suas músicas. Imagino ainda que, confrontado com uma pergunta mais direta – que eu acho até que nem faria –, ele talvez desse só um sorriso cansado e me respondesse simplesmente que nós, apesar de tudo, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. E que, sob o sol, nova é somente a vida. Caindo como pedra sobre o povo.
Faz tempo, Belchior, que ninguém canta uma canção assim. Muito tempo, mestre.
Salve!
(Deixando a profundidade de lado, só uma simples retórica sentimental na hora do almoço)
P.S.: Se fosse reescrever esta crônica hoje, talvez lhe acrescentasse mais alguns versos, mas ela já disse o que tinha a dizer assim como está. E esta foi só mais uma das histórias que eu sei …
Belíssima crônica! Quantas saudades do Belchior! E do Avelar! Vida longa e próspera aos dois! Para mim, eles nunca morreram…
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Continuam conosco, sem dúvida! Obrigada.
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Republicou isso em REBLOGADOR.
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“Música é perfume!”, já disse Maria Bethânia em entrevista ao diretor francês Georges Gachot, o qual pincelou essa frase e deu nome a um filme dele sobre a cantora.Ela quis dizer que música e perfume/um cheiro os são os elementos que, em fração de segundos, mais nos fazem visualizar, sentir, reviver, lembrar ou raciocionar sobre um assnto.Ao ler essa sua história e também homenagem ao seu tio/irmão e ao Belchior nos damos conta de como isto é verdadeiro, de como a música nos remete a tantas lembranças e permeia a nossa vida.
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E ela tem razão. Eu ainda poderia completar que é perfume da memória.
Obrigada.
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Bela crônica! Remete a muitas lembranças e reflexões.
🙌😀👍👏
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Bela crônica, que remete a muitas lembranças e reflexões.
👍🙌😀👏
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Obrigada, Mauro.
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