Terça-feira, 31 de maio de 2022 (entre a chuva e o vento)

‘Sei que vou morrer não sei o dia
Levarei saudades da Maria
Sei que vou morrer não sei a hora
Levarei saudades da Aurora
Eu quero morrer numa batucada de bamba
Na cadência bonita do samba’
Maio foi um mês cheio de tragédias de todos os tipos. Entre desastres naturais e os provocados pelo homem, para a crônica deste mês eu escolhi falar mais uma vez sobre o tempo, nossa tragédia maior. Hoje eu vou contar outras daquelas histórias sobre velhos. Vou falar mais uma vez sobre a percepção da finitude da vida e novamente sobre o sentimento humano que a cerca, outro tema recorrente por aqui. Tão recorrente que quase enjoa. Mas quase não é todo e, portanto, lá vamos nós outra vez.
Fernanda Montenegro, 92 anos, alcançou recentemente a imortalidade através da Academia Brasileira de Letras. Numa entrevista que deu, um dia desses, ela falou sobre isso e falou também, paradoxalmente, sobre a percepção da finitude de sua vida. Sobre a imortalidade via ABL, prefiro dizer apenas que vejo esta instituição como uma instituição presa a (pré) conceitos, práticas ultrapassadas e políticas, no mínimo, questionáveis, e não acho que valha a pena falar sobre suas eleições. Sobre Fernanda Montenegro, junto-me ao coro dos que a vêem como um patrimônio nacional em sua área de atuação. A este coro, arrisco-me a dizer, pode-se acrescentar até o silêncio dos que não o admitem por razões de momento, mas este é só aquele parêntese que me persegue. Fernanda Montenegro dispensa predicados e é um nome que por si só se explica e pronto. Já sobre a finitude da vida real, sobretudo sob a perspectiva dos velhos, eu falaria um dia inteiro, juntando aqui e ali as histórias que já vi e ouvi. Nesta entrevista a atriz respondeu o seguinte, a um repórter que lhe perguntou se tinha medo da partida: “Sentirei saudade. Gostaria de levar comigo a minha memória.” Conta, em seguida, um desmaio que teve em 2019, do qual demorou para acordar novamente. Fala da paz absoluta que tomou conta dela quando finalmente voltou, e da estranha sensação de desligamento que teve, sem memória do passado e do presente. – Será que a morte é isso? Não sei. E diante deste mistério ficamos especulando para onde iremos. Se eu for para algum lugar, eu queria muito levar a minha memória.’ Pediu ao repórter uma cópia da entrevista: “Queria tê-la. Porque tudo já é meio uma despedida para mim. Uma hora acaba. Não tem jeito”.
Tenho experimentado, já há alguns anos, e como já disse outro dia, a tristeza de ver partir os amigos dos meus pais e sogros. Uma boa parte desses amigos é formada pelos que foram figuras presentes na maior parte das nossas vidas ou que passaram por ela de maneira marcante e assim entraram, além de tudo, para o nosso anedotário familiar. Tios e tias legítimos ou por afinidade, que nos deram muitos primos/amigos, alguns dos quais alguns também viraram nossos amigos de vida, tecendo assim a intricada teia de relacionamentos que é tão comum por aqui, neste pedaço de mundo onde vive o meu sentimental povo nordestino e suas particularidades. São amizades tão antigas que um desses tios postiços, por exemplo, foi com meu pai à fazenda dos meus avós para acompanhar o pedido de casamento da minha mãe, mais de sessenta anos atrás. Vendo meu pai encabulado, ameaçou pedir a noiva para ele, se papai demorasse muito. Foi uma das pessoas mais espirituosas que conheci e frequentou nossa casa quase todos os dias até perto de morrer. Talvez um dia eu dedique a ele mais algumas linhas deste blog, mas a última conversa que tive com ele foi a que mais me marcou. Numa pequena reunião na casa dos meus pais ele me falou que teria que se submeter a um cateterismo cardíaco e que estava com medo disso. – “Tio, é um procedimento corriqueiro, hoje… Todo mundo faz…”, foi a minha resposta confortadora padrão. “Mas eu nunca fiz!”, foi a dele. Era para ter dado certo mas não deu.. E eu, além de me lembrar dele sempre transbordando alegria e bom humor, tive que ficar com a lembrança do seu medo no fim.
No ano passado morreu também a matriarca de outra família amiga. Seu marido, de quem já era viúva, também foi amigo do meu pai desde a juventude. Os mais velhos de nós, lá de casa, somos contemporâneos dos filhos deles, e mesmo não sendo amigos, convivemos com todos em alguma época. Ela tinha 89 anos, era lúcida e estava planejando pessoalmente a sua festa de 90 anos. Teve uma destas infecções que em idosos com comorbidades evoluem rapidamente para uma sepse. Consciente até o fim, quando ouviu do médico que precisaria ser intubada, dada a gravidade do quadro, disse a ele que não autorizava o procedimento. Que queria apenas se despedir de cada um dos filhos. O médico ainda perguntou a ela se tinha certeza disso e ela confirmou a decisão. Os filhos foram autorizados, então, a entrar na UTI de dois em dois. Não sei dizer como foram essas despedidas e não entraria num momento tão íntimo desses para perguntar. Mas sei que isso ocorreu à tarde e ela morreu durante a madrugada que se seguiu. Lembro dessa senhora ainda jovem, nas novenas e missas do padroeiro de sua cidade natal, que foi também a da infância e de parte da juventude de meu pai e de seu marido. Permaneceu devota durante toda a sua vida e por este motivo, imagino que tenham levado um padre para ouvir sua confissão e lhe dar o último sacramento. Ela não me parecia alguém que aceitaria menos do que sua fé, no final.
Meu sogro tem uma única irmã. Ela tem 80 anos e é apenas dois anos mais nova do que ele. Os dois foram muito ligados durante a vida inteira e assim são também seus filhos até hoje. É uma pessoa jovial, ativa e muito divertida. Em 2008 ela nos acompanhou – a mim, meu marido e cunhados –, numa viagem pelo interior da França, sem perder o pique em nenhum momento. Ela entrou na viagem de última hora e, numa programação que nem de longe visava alguém da terceira idade, topou tudo! De viagens de trem à meia-noite a travessias a pé de um vilarejo para outro, com paradas para piqueniques entre bosques e estradinhas rurais ou espremida num carro que era para cinco pessoas quando éramos seis, num gelado começo de primavera europeia. Curtiu cada minuto e nunca reclamou de nada. Ela é médica e, juntamente com o marido, também médico, constam daquela lista de estudantes e jovens profissionais que passaram pelos porões e presídios do regime militar brasileiro no final dos anos sessenta. De lá saíram para completar uma família bonita e também para construir uma carreira profissional extraordinária, que os levou a viajar por grande parte do mundo entre congressos, conferências, pesquisas e, claro, lazer também. Passou o último ano e meio isolada até mesmo dos filhos e, fumante desde a juventude, descobriu recentemente um câncer de pulmão. Para a família, inclusive para o marido, comunicou isto apenas depois de uma festa de aniversário, para não estragar a alegria de ninguém. Fez quimioterapia e radioterapia e vai seguindo com a vida. Para nós a notícia só chegou há pouco tempo, quando veio a Teresina para se despedir, porque diz que não virá mais por aqui. Contou o fato para minha sogra e as duas decidiram não compartilhar com meu sogro, que de qualquer forma já não retém mais as informações. Por causa da pandemia, preferiu não nos encontrar pessoalmente, embora tenha falado com todos nós, mas pediu à minha sogra que desse uma longa volta de carro com ela, para ver pela última vez a cidade onde nasceu e viveu parte de sua vida. Aqui também a minha curiosidade é menor do que o meu respeito à privacidade alheia, e também não perguntei como foi o passeio. Mas, tão grandes quanto o meu respeito são a minha imaginação e o meu sentido de nostalgia, e eu consigo entender perfeitamente este tipo de despedida, mesmo em uma pessoa cuja marca registrada na vida sempre foi a praticidade. Antes de vir para cá ela foi com o marido à Fortaleza, participar do encontro da turma de formatura de ambos e rever alguns daqueles amigos, também pela última vez. Diz que fizeram o encontro de quatro em quatro, a céu aberto e sem aglomerações. Mas era outra coisa que queria muito fazer. Ela não é, nem de longe, uma velhinha piegas, então aqui eu consigo ver apenas o tempo – ou o que resta dele para ela – fazendo seus sortilégios.
No início deste ano, o irmão mais velho de meu pai completou 90 anos. Ele é também, dos seus irmãos, o mais chegado. Figura constante e sempre presente em nossa casa desde sempre, é um tio muito querido por todos nós. Foi, assim como seu pai antes dele, uma pessoa importante no seu município e para boa parte do povo de lá durante a maior parte da sua vida. Não fez festa e a maioria de seus contemporâneos não estava mais por aqui para parabenizá-lo, mas não foram poucas as pessoas que passaram para um abraço e um cumprimento. Quando liguei para parabenizá-lo, já me atendeu falando, emocionado, que chorava desde que o dia amanheceu. Que a cada pessoa que o comprimentava, desde cedo, as lágrimas corriam. Ele sempre foi um sujeito durão e lágrimas – pelo menos as próprias – nunca fizeram parte de seu cotidiano. Mas não foi difícil, para mim, entendê-las naquele momento. Nos poucos minutos em que falei com ele, imaginei o que estava sentindo. Com a visão bastante comprometida, fragilizado pela idade, por algumas doenças e pelas agruras próprias da vida, este meu tio é hoje uma pálida sombra do homem vigoroso que foi. Assisti de perto, dentro da casa dos meus pais, à luta que travou contra a covid-19 e às tentativas que fez de manter sua antiga força – na sua cabeça era assim que pensava e era também o que nos dizia. Venceu a doença mas a força falseou e não retornou mais da mesma maneira. O inverno chegou para ele, em definitivo, na forma de uma limitação física irreversível, com total e dolorida consciência dela. E a alegria é para ele, hoje em dia, tão fugaz como a luz do dia.
No dia desse aniversário, depois de falar com meu tio, meu pai, em seu mundo de realidade nebulosa e solidão de amigos, só conseguia repetir que o irmão falou que estava com a calçada “cheia de gente”. E que iria fretar um avião ou um jipe para ir para lá, também. Queria, ele também, fazer sua volta pessoal à sua casa. No pico da ômicron, em janeiro, foi difícil fazer esta sua vontade, mas na última semana dois dos meus irmãos empreenderam uma longa e cansativa viagem para levá-lo num passeio de volta às suas raízes. Viu as irmãs que há tempos não encontrava, foi novamente – e pela última vez, com toda certeza –, hóspede de seu irmão mais querido, e pisou novamente o chão da casa e da terra em que viveu toda a sua infância, Ele aguentou a viagem com firmeza porque era um propósito lúcido de sua mente, e no decorrer dela, à medida que passava pelos lugares, lembrou-se de muitas passagens de sua vida. Mas a ‘solidão de amigos’ é sua realidade em qualquer lugar onde esteja e, como não poderia deixar de ser, não encontrou mais as pessoas que o chamavam pelo primeiro nome. Na véspera da viagem, numa possível antecipação deste fato, quis desistir de ir porque, segundo ele, “tudo agora é só tristeza”. Mas depois seguiu com o plano.
O tempo, o grande diretor e poderoso curador, é a tragédia maior da nossa brevíssima humanidade, é o que eu acho. A consciência desta tragédia aumenta na mesma proporção em que aumenta o nosso repertório de histórias como essas para contar. Ricas ou ordinárias, as lições que elas nos deixam falam quase sempre das mesmas coisas: saudade, coragem, fé, tristeza, alguma alegria, medo, resignação… Muitas delas me causam admiração e outras, comiseração. Seja como for, aprender com elas é um exercício que eu me proponho a cada nova história dessas que me aparece. É assim que eu imagino meu treinamento para enfrentar meu próprio tempo, quando o meu quinhão dele estiver perto de se encerrar. “Uma hora acaba, não tem jeito”. Chegar lá preparada é a resposta que eu sempre quis dar ao tempo. Mas, sobre encerrar, quem pode dizer quando será? E enquanto o tempo não vem (e até para quando ele passar), penso que bom mesmo era se eu pudesse – ou quisesse – da consciência do fim tirar a lição do Caieiro e com ela fazer um brinde aos que ficarem depois. Na cadência bonita de um samba ou na batida boa de um rock, sei lá… Quem sabe um dia eu consiga, não é?
Enquanto isso não vem, para exercitar o desapego, Quando Vier a Primavera, por Alberto Caieiro.
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
“ Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.”
Manuel Bandeira
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A vida é mesmo uma sequência interminável de despedidas, e quanto mais por aqui ficamos, mais enterramos pessoas queridas. Texto emocionante e verdadeiro! Parabéns!!
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Obrigada.
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Parabéns Lysia, gostei muito da sua crônica. Ela me fez lembrar de amigos que já se foram, e dos que, como eu, continuam por aqui aguardando a sua vez de partir. Aguardo na fila sem pressa, não quero ultrapassar ninguém; gosto de ainda estar por aqui.
Continue escrevendo, você ainda tem muito tempo por aqui.
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Que sua fila seja longa e demore a andar!
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