Um pé de saudade e um cheiro de avó pelo ar

Quarta-feira, 31 de agosto de 2022 (para voltar às flores)

Uma das composições mais bonitas do Cazuza é uma que ele nunca gravou e nem sequer imaginou que um dia viraria canção. Poema, que todo mundo conhece pela linda interpretação de Ney Matogrosso, é uma poesia que Cazuza fez para sua avó paterna, aos 17 anos de idade. Esta letra só foi descoberta muito tempo depois de escrita, e bem depois da morte do cantor, quando a avó morreu, aos 102 anos (e muitos anos depois dele). Depois da morte da ex-sogra, Lucinha Araújo, mãe do cantor, recebeu, como lembrança, algumas fotos, discos autografados e uma caixinha com o texto. Ela então ligou para Frejat, pedindo que ele musicasse o poema. Depois de uma noite em claro ele finalizou a melodia e os dois resolveram que a música ficaria perfeita na voz de Ney Matogrosso, que a gravou no próximo disco que lançou. É até hoje a música mais tocada deste intérprete sensacional.  

Muito tempo atrás, quando morava em Minas, eu às vezes passava pelo trabalho do meu pai para pegar carona para casa. O funcionário que fazia as vezes de recepcionista, ali, era um sujeito simpático, afável, brincalhão, e seus filhos eram amigos dos meus irmãos mais velhos e frequentadores da nossa casa. Eu gostava muito de conversar com ele enquanto esperava por meu pai; era sempre um papo bom. Em uma dessas nossas conversas eu falei, muito animada, das férias que estavam chegando e que eu iria, depois de dois anos longe, passar no Piauí, com meus avós. Nunca me esqueci do sorriso cheio de saudade que vi no rosto dele, quando me disse que aproveitasse isso porque o tempo dos nossos avós vivos era a melhor época da nossa vida. Eu me lembro também do desconforto leve que senti naquele momento, como se pela nostalgia que percebi nele eu já antecipasse o que seria a minha no futuro. Meu avô morreu dois anos depois disso, quando ainda morávamos em Minas, e talvez também por isso eu tenha guardado essa lembrança de maneira tão vívida. 

Meu tempo de avós foi todo o meu tempo de criança. Minhas férias eram sempre com eles, duas vezes por ano, desde muito novinha. Aquela fazenda onde eles moravam era, para mim, o mais perto que eu podia chegar do paraíso na Terra. Entre sonhos, reinos inventados e brincadeiras, lá eu comia poeira, pisava lama, respirava vento, bebia chuva… Uma parte significativa da pessoa que eu sou hoje foi moldada com o barro vermelho daquele lugar, eu acho. Lá eu dormia no quarto dos meus avós, numa cama de casal antiga, que eu dividia com um irmão mais novo. Meus avós dormiam cada um em uma rede, e muito frequentemente, quando acordava com medo, eu pulava para a rede de um dos dois, para dormir “de costela”, como falamos por aqui.  Não tínhamos luz elétrica depois que o gerador era desligado. A partir daí a luz possível era, lá fora, a da lua – se houvesse –, e dentro de casa, a das lamparinas a querosene, que eram apagadas quando todos iam dormir. Mas como eu tinha medo de escuro, a do quarto dos meus avós ficava acesa durante toda a noite. Se o querosene acabasse ou alguém apagasse a lamparina antes do dia amanhecer eu acordava na mesma hora, gritando por um dos dois. Quantas vezes acontecesse era a mesma coisa: eu acordava imediatamente. Meus avós se divertiam com isso e um ou outro sempre se levantava para dar um jeito de acender a vela novamente. Luz de volta, eu voltava a dormir imediatamente. Como tantas referências boas daquele tempo, esta também foi uma que entrou para a minha mitologia pessoal. Meu tempo de avós foi todo o meu tempo de criança e até hoje, embora prefira dormir no escuro, quando as coisas parecem nebulosas demais, a lembrança de alguém acendendo a lamparina me dá de volta um pouco da impressão de segurança que eu tinha naquele tempo. 

Em julho tem uma data reservada às avós. O Saramago tem uma crônica linda dedicada à sua avó Josefa. Da história da música do Cazuza eu só fiquei sabendo pouco tempo atrás e, talvez por ela, ou por causa da data, ou até pela crônica do Saramago, que tenho em papel-cartão, na minha mesinha de cabeceira, eu ultimamente tenho me lembrado muito da minha própria avó. A materna porque a paterna eu não conheci. Já falei dela por aqui, algumas vezes; era uma senhorinha pequena, valente, de personalidade forte e língua afiada como um punhal, e foi uma das figuras mais marcantes da minha vida. Não era nem um pouco politicamente correta e costumava julgar as pessoas pelos olhos: gente que não olhasse nos olhos não era de confiança. Até onde eu me lembro ela nunca se enganou com ninguém. Ela nunca foi daquelas avós fofas ou meigas, mas sabia como cativar os netos. Nas conversas privadas, suas impressões sobre os outros continham quase sempre uma certa dosezinha de veneno que me divertia demais. E sua devoção religiosa e sua coragem para enfrentar dificuldades viraram lendas na nossa família. Nesta semana a lembrança dela foi mais forte também porque meu jasmim-bugarin está todo florido, o que é bem incomum nesta época do ano. É uma flor que minha avó adorava, e a que eu tenho em casa é descendente direta de uma que ela mesma deu de presente para minha mãe. O bugarin, assim como as samambaias, as dálias, os resedás e até mesmo as rosas, não é mais uma flor comum nos jardins modernos. As plantas ‘modinhas’ são outras. Acho que as pessoas que querem jardins, hoje em dia, talvez não sejam mais aquelas que tiveram quintais ou jardins para recordar. Ou avós, talvez… Mas este é só aquele meu velho parêntese. E eu sou daquelas chatas  saudosistas profissionais, então, no meu quintal eu plantei alguns pés de saudade. Este bugarin da vovó talvez seja a planta mais bem cuidada de lá, por tudo de bom que evoca: Tempo e cheiro de avó.

Quando lia a história do Cazuza, mais uma vez eu me diverti com a lembrança da minha avó. Muito tempo depois que ela morreu, dentro de um de seus livros de oração (ela rezava por todos nós todos os dias), uma tia encontrou um recorte de jornal com uma foto minha. Eu queria poder dizer que era alguma coisa importante, mesmo não sendo uma poesia linda como a do Cazuza. Ou, pelo menos, algo relevante. Mas não… Por ocasião do dia do médico, muito tempo atrás eu fui entrevistada por um jornal local sobre… letra feia. A foto ficou boa, no entanto.  E tem coisas que só uma avó entende ou enxerga. Eu acho.

Toda história que se conta hoje já foi contada e recontada inúmeras vezes antes, dizem alguns dos sábios da atualidade (vide Belchior, Jorge Luiz Borges etc…). Dizem isto também os muito antigos – quem já leu o Eclesiastes? Nada de novo sob o sol que banha de luz a humanidade. Os profetas menos óbvios muitas vezes repetem verdades antigas por detrás de um birô de trabalho. Os poetas natos também fazem isso nas mais inusitadas situações. E eu, que não sou nem um nem outro – e nem avó, ainda – apenas cultivo flores antigas no meu quintal. Pés de saudade plantados com o bom adubo das lembranças de um tempo simples, tranquilo, em que a proteção vinha em forma de orações e da certeza de uma lamparina acesa para clarear o que era escuro e assim afastar o medo do mundo. 

Salve, Cazuza, meu velho amigo mineiro e a minha avó também!

Poema

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo

Eu acordei com medo e procurei no escuro alguém com seu carinho

E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança

Do tempo que eu era criança

E o medo era motivo de choro

Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo, mas não chorei

Nem reclamei abrigo

Do escuro, eu via um infinito sem presente

Passado ou futuro

Senti um abraço forte, já não era medo

Era uma coisa sua que ficou em mim

De repente, a gente vê que perdeu

Ou está perdendo alguma coisa

Morna e ingênua

Que vai ficando no caminho

Que é escuro e frio, mas também bonito

Porque é iluminado

Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo

Eu acordei com medo e procurei no escuro alguém com seu carinho

E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança

Do tempo que eu era criança

E o medo era motivo de choro

Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo, mas não chorei

Nem reclamei abrigo

Do escuro, eu via um infinito sem presente

Passado ou futuro

Senti um abraço forte, já não era medo

Era uma coisa sua que ficou em mim

Que não tem fim

De repente, a gente vê que perdeu

Ou está perdendo alguma coisa

Morna e ingênua

Que vai ficando no caminho

Que é escuro e frio, mas também bonito

Porque é iluminado

Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás

5 comentários em “Um pé de saudade e um cheiro de avó pelo ar

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  1. Muito bonita a crônica, toca fundo no coração de todos nós. Avós têm cheiro de tudo o que é bom, como amor,carinho, entrega, e muito mais. Vivi momentos únicos ao lado das minhas, tanto na infância como na vida adulta; cheguei a morar com minha avó materna quando fui estudar medicina em Fortaleza, e como era bom ser paparicada por ela.
    Deixaram saudades quando partiram.

    Curtido por 1 pessoa

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